sexta-feira, 27 de junho de 2014
terça-feira, 17 de junho de 2014
quinta-feira, 5 de junho de 2014
Minhas Peças
A VIRTUDE DO OPRESSOR
A Virtude do Opressor
1. Funções
Eu queria muito estar entre as funções do amanhecer. Chamo de função tudo que não é aceitável compreender, depois que as esferas da noite, suspeitas nos seus obscuros néons, emudecem as sensações equivocadas referentes à claridade; chamo de função o campo impetuoso, invisível, que a investigação sobre o amor tonteia; chamo de função trazer à tona o ilustre equilíbrio da causa após os conflitos garantidos pela ausência de poemas, revolvendo a febre da caça numa energia vã. Eu queria, mesmo, estar entre as funções do amanhecer, e ali ficar, até que me retirassem as vendas, as mordaças, as amarras... Assim, eu desceria do cadafalso perjurando a infelicidade de ter vivido a opressão oclusa em memória desgarrada de mim, esperaria entender porque dentre todas as malícias, não tive nenhuma que me colocasse novamente no meio do povo. Talvez o arrependimento da sonoterapia submetida pelo horror, fizesse berrar a inocência e aclarasse o idiota que fui quando achei que sabia tudo. Falei do amor e não me contive, sei lá o que é isso. Falei da luz, ainda no escuro, nem sei o que pensar. A impressão que tenho, é que nunca estive de verdade na hora da manhã renovadora, uma vez que segui aglomerado pela passagem privada e inalterada, como um animal de olhos úmidos que só tem à sua frente a visão do rabo do seguinte. Eu queria as funções do amanhecer. Queria ser. Quem sabe eu berrasse assim, e me encantasse de fato com a palavra viver.
Canção 1 – “Já vou indo”
Eu já vou indo meu bem, me dá esse abraço:
Que é pra eu não levar, saudade,
Sei que durante a manhã, a cerveja te adula...
Mas vou-me, sei lá, esqueço a cidade, esqueço a verdade,
Do beijo marcado e vou
Já que eu sou poeta e tenho uma lágrima bebida na boca, me custo pra ir.
Se pudesse, te feria dentro, assim, baioneta afiada com esse meu desespero de ter que ir que ir,
Lamento muito tanta janta esfriada, tantos meninos que não adotamos,
Porém, não há culpa minha, nem de alguém é melhor dizer,
Porque depois disso, sei não se a saudade, será pra sentir ou desejar.
Sou poeta, apenas sou poeta, quem sabe você, que viveu a demência, sossegou na doença, das rimas tão pobres que eu não soube fazer, adeus.
Já vou indo meu bem, me dá esse abraço, que é pra não levar saudade...
1-2 VEM...
Não tenha medo, ainda, criatura. Regozije-se com a oportunidade de sair do quadro. Não se canse, agora. Não se perca, agora. Eu tenho mil palavras para dizer, uma delas pode significar tudo o que mais deseja. Venham comigo, venham... (Pára de repente) Não, não façam isso, dêem as mãos, dêem as mãos todos vocês. (Crescendo) Dêem as mãos para que ninguém passe a frente de ninguém... Sorriam, sorriam para trabalhar os músculos da face, sorriam. (TOCANDO OS ROSTOS DAS PESSOAS) lindo, lindo, como seu sorriso é lindo. Como seus lábios são belos. Como seus olhos... (Pára) Eu me vejo neles, distorcido... Oprimido. Vem...
Leva poema engraçado
Pro sono enternecê
A mulé contando causo
Pro seu home adormecê
Chega de lenga, lenga
Mulé eu tenho à venda
Uma saia de tricô
E um paletó de dotô
Com riscos formando xadrezes
Rabiscos de muita cor
Leva poema engraçado
Pro sono enternecê
A mulé contando causo
Pro seu home adormecê
Mulé, eu tenho veneno
No pote de mel, nesse espaço
Entre o imbigo e o céu, debaixo do coberto
Mulé, só num tenho vaidade
Pra ti desejo cantorias, não me vale sua idade
Se ocê tem vinte ano, tenho aqui pra ti vendê
Um creme pra ruga não te amolá
Mas se já passa dos trinta
Eu compro seu corpo inchado
Pra outro podê revendê
Quem compra a expiriênça
Leva mais do que prazê
Leva poema engraçado
Pro sono enternecê
A mulé contando causo
Pro seu home adormecê
2. Pureza
Fui descoberto, eu sei. Entrego-me! Denegrido da imagem inicial, espero confundir o traidor. Explico: todo homem quando menino tem no rosto a farta rotina da inocência e a inquebrantável suspeita da malícia. Entretanto o homem cresce, engana a si como se enganasse o general, está perdido: ninguém passa despercebido pela acusação do traidor. E pensar que a traição teve rosto de menino. Provavelmente até brincou de bola atrás ao meu lado ou ao seu, tanto faz quando se descobre que agora ele é quem manda. Não confiem na pureza das crianças, elas são dissimuladas, inconseqüentes e já nascem prontas. Prontas para pecado, para a marginalidade, para a dor... Ou para a devoção, patrão, conquistador.
Há um sem fim de gente possuindo tudo, mas bem poucos os que não querem muito. Não, não confundo o traidor, porque ele sabe que a minha cara de pureza é sua maior aliada. Deposto pode ser, mas o próximo fará outra vez. Fará. Melhor pra mim, continuarei discursando, pois nasci inocente, de uma pureza desigual, quase um anjo.
Canção 2 – “Mane”
Qual o teu sobrenome - Tu tens família, ô Mané?
Tua cara de cigano - Teu gingado de ralé.
Se te deram algum nome - Esquecestes dou certeza
Bato martelo e dou fé
Tu tens cheiro deslavado - De rua, esmola e balé,
Dançando na cela apinhada - De casca grossa no pé
Ai, brasileiro, mais um - Que não é e diz que é !
Tem nome de vagabundo - Sujeito sem verbo, imundo
O que te falta, Mane - É conhecer o teu mundo
Pra juntar com outros nomes - A força do inusitado
Criar vergonha na cara - Endireitar o safado
Quem acha que nada vale - É imbecil, ta travado
Sozinho, és cão na coleira - Juntado és voz e verdade
Sai dessa história, ô Mane - Faz cumprir a liberdade
Eu já tentei, estava só - Escuta o que fui, já passou
Virei sombra, virei pó - Mas, tu, soberano Mane
Desate esse grande nó
3. Apesar
Apesar do peso da lágrima, que jurou não rolar de meus olhos e ainda desejar cintilar de encontro a um raio de sol; apesar da descrença em que vivia minha flor, prometeu-me perfume eterno, mas secou, apresentando de volta o herege crédulo que sempre quis ser; apesar da conquista revertida em absolvição, apesar de todos os sonhos malabaristas sentidos orgânicos na consagração da alma quando se perdura o tempo entorpecido; apesar do oxigênio irrespirável, incalculável conspurcação, passado a limpo numa vesícula oca; apesar do corpo mole e decrépito, apesar do homem e da amnésia, fui feliz durante o parto.
E isso durou alguns segundos.
Canção 3 – “Lento”
Estava lendo Marx, a teoria puxou do revólver quadrado. Se fez absurdo o contrato, e numa bandeira pichou. Uma balança dourada, com tiros silenciadores
Não apaga, não há nenhuma borracha
Vaguei nas pinturas de muros, enquanto o quintal era grande
Ouvi pelo rádio ditames que o burro lutou em tatames
Com a égua do salvador e todos os retirantes
Portinari como avô de tintas num corredor. A morte do livro sagrado, por unhas de bruxos malvados
A tela regurgitada por vacas benzidas, tumor; De gente indo atrás daquilo que acreditou. Estava lendo um discurso de um velho imperador, Mas o que via na foto era a cara do executor. E nas memórias do fato ali a face de Che
Não entendia o que era, nem podia, eram miragens.
Ao fim do dia fui deitar na manjedoura, A ver se os reis traziam alguma novidade
Uma cruz feita de espelho, que refletisse o desleixo
Do nada que segue em frente, sem luta, sem caminhada.
Sem prumo, nem igualdade. Sem alento, lento, lento
Peregrino, humanidade.
1. Funções
Eu queria muito estar entre as funções do amanhecer. Chamo de função tudo que não é aceitável compreender, depois que as esferas da noite, suspeitas nos seus obscuros néons, emudecem as sensações equivocadas referentes à claridade; chamo de função o campo impetuoso, invisível, que a investigação sobre o amor tonteia; chamo de função trazer à tona o ilustre equilíbrio da causa após os conflitos garantidos pela ausência de poemas, revolvendo a febre da caça numa energia vã. Eu queria, mesmo, estar entre as funções do amanhecer, e ali ficar, até que me retirassem as vendas, as mordaças, as amarras... Assim, eu desceria do cadafalso perjurando a infelicidade de ter vivido a opressão oclusa em memória desgarrada de mim, esperaria entender porque dentre todas as malícias, não tive nenhuma que me colocasse novamente no meio do povo. Talvez o arrependimento da sonoterapia submetida pelo horror, fizesse berrar a inocência e aclarasse o idiota que fui quando achei que sabia tudo. Falei do amor e não me contive, sei lá o que é isso. Falei da luz, ainda no escuro, nem sei o que pensar. A impressão que tenho, é que nunca estive de verdade na hora da manhã renovadora, uma vez que segui aglomerado pela passagem privada e inalterada, como um animal de olhos úmidos que só tem à sua frente a visão do rabo do seguinte. Eu queria as funções do amanhecer. Queria ser. Quem sabe eu berrasse assim, e me encantasse de fato com a palavra viver.
Canção 1 – “Já vou indo”
Eu já vou indo meu bem, me dá esse abraço:
Que é pra eu não levar, saudade,
Sei que durante a manhã, a cerveja te adula...
Mas vou-me, sei lá, esqueço a cidade, esqueço a verdade,
Do beijo marcado e vou
Já que eu sou poeta e tenho uma lágrima bebida na boca, me custo pra ir.
Se pudesse, te feria dentro, assim, baioneta afiada com esse meu desespero de ter que ir que ir,
Lamento muito tanta janta esfriada, tantos meninos que não adotamos,
Porém, não há culpa minha, nem de alguém é melhor dizer,
Porque depois disso, sei não se a saudade, será pra sentir ou desejar.
Sou poeta, apenas sou poeta, quem sabe você, que viveu a demência, sossegou na doença, das rimas tão pobres que eu não soube fazer, adeus.
Já vou indo meu bem, me dá esse abraço, que é pra não levar saudade...
1-2 VEM...
Não tenha medo, ainda, criatura. Regozije-se com a oportunidade de sair do quadro. Não se canse, agora. Não se perca, agora. Eu tenho mil palavras para dizer, uma delas pode significar tudo o que mais deseja. Venham comigo, venham... (Pára de repente) Não, não façam isso, dêem as mãos, dêem as mãos todos vocês. (Crescendo) Dêem as mãos para que ninguém passe a frente de ninguém... Sorriam, sorriam para trabalhar os músculos da face, sorriam. (TOCANDO OS ROSTOS DAS PESSOAS) lindo, lindo, como seu sorriso é lindo. Como seus lábios são belos. Como seus olhos... (Pára) Eu me vejo neles, distorcido... Oprimido. Vem...
Leva poema engraçado
Pro sono enternecê
A mulé contando causo
Pro seu home adormecê
Chega de lenga, lenga
Mulé eu tenho à venda
Uma saia de tricô
E um paletó de dotô
Com riscos formando xadrezes
Rabiscos de muita cor
Leva poema engraçado
Pro sono enternecê
A mulé contando causo
Pro seu home adormecê
Mulé, eu tenho veneno
No pote de mel, nesse espaço
Entre o imbigo e o céu, debaixo do coberto
Mulé, só num tenho vaidade
Pra ti desejo cantorias, não me vale sua idade
Se ocê tem vinte ano, tenho aqui pra ti vendê
Um creme pra ruga não te amolá
Mas se já passa dos trinta
Eu compro seu corpo inchado
Pra outro podê revendê
Quem compra a expiriênça
Leva mais do que prazê
Leva poema engraçado
Pro sono enternecê
A mulé contando causo
Pro seu home adormecê
2. Pureza
Fui descoberto, eu sei. Entrego-me! Denegrido da imagem inicial, espero confundir o traidor. Explico: todo homem quando menino tem no rosto a farta rotina da inocência e a inquebrantável suspeita da malícia. Entretanto o homem cresce, engana a si como se enganasse o general, está perdido: ninguém passa despercebido pela acusação do traidor. E pensar que a traição teve rosto de menino. Provavelmente até brincou de bola atrás ao meu lado ou ao seu, tanto faz quando se descobre que agora ele é quem manda. Não confiem na pureza das crianças, elas são dissimuladas, inconseqüentes e já nascem prontas. Prontas para pecado, para a marginalidade, para a dor... Ou para a devoção, patrão, conquistador.
Há um sem fim de gente possuindo tudo, mas bem poucos os que não querem muito. Não, não confundo o traidor, porque ele sabe que a minha cara de pureza é sua maior aliada. Deposto pode ser, mas o próximo fará outra vez. Fará. Melhor pra mim, continuarei discursando, pois nasci inocente, de uma pureza desigual, quase um anjo.
Canção 2 – “Mane”
Qual o teu sobrenome - Tu tens família, ô Mané?
Tua cara de cigano - Teu gingado de ralé.
Se te deram algum nome - Esquecestes dou certeza
Bato martelo e dou fé
Tu tens cheiro deslavado - De rua, esmola e balé,
Dançando na cela apinhada - De casca grossa no pé
Ai, brasileiro, mais um - Que não é e diz que é !
Tem nome de vagabundo - Sujeito sem verbo, imundo
O que te falta, Mane - É conhecer o teu mundo
Pra juntar com outros nomes - A força do inusitado
Criar vergonha na cara - Endireitar o safado
Quem acha que nada vale - É imbecil, ta travado
Sozinho, és cão na coleira - Juntado és voz e verdade
Sai dessa história, ô Mane - Faz cumprir a liberdade
Eu já tentei, estava só - Escuta o que fui, já passou
Virei sombra, virei pó - Mas, tu, soberano Mane
Desate esse grande nó
3. Apesar
Apesar do peso da lágrima, que jurou não rolar de meus olhos e ainda desejar cintilar de encontro a um raio de sol; apesar da descrença em que vivia minha flor, prometeu-me perfume eterno, mas secou, apresentando de volta o herege crédulo que sempre quis ser; apesar da conquista revertida em absolvição, apesar de todos os sonhos malabaristas sentidos orgânicos na consagração da alma quando se perdura o tempo entorpecido; apesar do oxigênio irrespirável, incalculável conspurcação, passado a limpo numa vesícula oca; apesar do corpo mole e decrépito, apesar do homem e da amnésia, fui feliz durante o parto.
E isso durou alguns segundos.
Canção 3 – “Lento”
Estava lendo Marx, a teoria puxou do revólver quadrado. Se fez absurdo o contrato, e numa bandeira pichou. Uma balança dourada, com tiros silenciadores
Não apaga, não há nenhuma borracha
Vaguei nas pinturas de muros, enquanto o quintal era grande
Ouvi pelo rádio ditames que o burro lutou em tatames
Com a égua do salvador e todos os retirantes
Portinari como avô de tintas num corredor. A morte do livro sagrado, por unhas de bruxos malvados
A tela regurgitada por vacas benzidas, tumor; De gente indo atrás daquilo que acreditou. Estava lendo um discurso de um velho imperador, Mas o que via na foto era a cara do executor. E nas memórias do fato ali a face de Che
Não entendia o que era, nem podia, eram miragens.
Ao fim do dia fui deitar na manjedoura, A ver se os reis traziam alguma novidade
Uma cruz feita de espelho, que refletisse o desleixo
Do nada que segue em frente, sem luta, sem caminhada.
Sem prumo, nem igualdade. Sem alento, lento, lento
Peregrino, humanidade.
4 A OPRESSÃO DO AMOR
Te amo, entretanto há um silêncio macabro entre os nossos dedos.
Ainda sei que amo... o sentimento vermelho, cego, que enxerga no escuro da posse. Você sabe...
Quantas vezes me bateu no rosto e me julgou traidor. Você sabe...
Sei! Era o medo de perder tornando meu ciúme carrasco de nós, o terror de viver sem.
Eu sei, também era assim comigo. E agora...
E agora?
E agora ainda é assim. Para chegar lá, o homem e seu caminho, em caminho indo por senso tamanho, o tal do homem indo, vem, farto e chato
Como um vírus mínimo que não tem olfato. O tolo ser caminha, para ser destino. De chegada, onde? Onde se quer ou se pode? Onde se esteve, doente, onde se esteve contente, onde se esteve insano, lugar de qualquer humano. Abismo de vírus e estrada, aonde se quer chegar?
Eu preciso de silêncio. Um pouco de silêncio, por favor. Em qual torno se esculpi o sonho do homem? Há de vir resíduos, há de vir lamentos, há de ser tão novo, que o Criador se espante e diga numa canção: “não me vejo nele e no outro, São modernos demais pra mim e, menores do que supus que a criatura fosse ficar. No entanto, quantos prantos, soletram os olhos do ente novo, ah! Nele não posso ver-Me, “Nem mirar ou admirar, porque se assemelha ao que nunca quis ao homem ofertar”.
Isso é puro poema, sem nexo, sem explicar o que temos um com o outro.
Eu amo.
Ama?
Você ama? Tenho que deixar você ir, não posso oprimir.
A nossa opressão pode nos unir ainda uma vez. Acho que te amo.
Também acho que amo.
Muito?
Nada. E ao mesmo tempo, tanto e tudo. Vamos nos deixar?
(silêncio. Beijo) MÚSICA. O VENTO VARRE FOLHAS E FLORES EM TODA A CENA.
CENA VIRTUDE ÚNICA
Você me oprime como as montanhas. Altas e sonhadoras, idealizam os céus ou as planícies, conforme o bel prazer de sua história. Você me oprime tanto: tato, olfato, audição, paladar, visão. Eu gosto de me ver dentro de seus olhos. É uma imagem distorcida. Você me oprime como as Bahamas, como barcos desaparecidos, como ilhas submersas, como espermatozóides desperdiçados. Em seus olhos eu me vejo pequeno. Me oprime. Me oprime. Longe estará a causa de sua alma, não aparecendo imediatamente quando reflito entre as pequenas veias de seus olhos. Você me oprime, não a ponto de lhe dizer essa verdade: você me oprime porque te oprimiram, me atinge porque te atingiram, essa é uma vitória inquestionável. Um circulo, um mundo, uma laranja, um umbigo. A bola que não tem parada, contínua, girando tão rapidamente que uns passam à frente do outro e tomam posição primeiro. O segundo sempre será oprimido, como eu agora. Você me oprime porque não entende logo de saída as minhas palavras. E sabe por quê? Porque aí, escondido atrás dessa cortina de retina, há um cérebro em dificuldade, uma vastidão de perguntas e respostas pré-fabricadas, uma tempestade que ecoa: quem sou eu, quem sou eu, quem sou eu... eu sei, aqui (aponta a cabeça) também tenho um turbilhão. Você me oprime e eu, generosamente, oprimo você. É a virtude. Única virtude. Esmerada virtude.
Você me oprime. Você: me oprime? Você. Me oprime! Você... me... oprime...”
Leva poema engraçado
Pro sono enternecê
A mulé contando causo
Pro seu home adormecê
4. Varejo
Assim, de varejo em varejo, estabelece-se o mal humor.
Todos, sem exceção, sabem exatamente como o mundo é. Mas a grande merda, a despeito de dizerem que somos todos irmãos, é que cada cabeça tem uma bússola diferente.
Eu vou pro sul e você pro leste.
Desse modo, esse meu depoimento está cenicamente bordado em pedrarias caríssimas, conforme o conceito de uns.
E provavelmente artesanal e reciclável para outros. Mas o que se há de fazer: merda é merda em qualquer circunstância.
Algumas somem via privadas devidamente desinfetadas,
outras se depositam em qualquer canto errôneo da terra, e se decompõem. O meu depoimento só pode gerar mal humor. O que é que se pode esperar, quando vejo minha arte decapitada, irresoluta e generalizada?
Ou as pessoas acham, que se constrói uma opinião do dia pra noite? Não, leva tempo, às vezes muitas vidas.
E o terrível é quando se chega até aqui, e se descobre que a maior importância no mundo pras pessoas é o que está escondido sob a roupa cara e com prazo de validade, ou seja, a pele nua e a mediocridade.
Eu sou opressor, veja bem, opressor. Mas muito oprimido, contudo. Apenas, alguns seguem para oeste e outros procuram o norte.
Sou um broche simbolista, ativista de causas pessimistas, otimista referindo-me ao tema central, que não é nenhum ou são vários, reservado em direitos pela sedução do ter, enigmaticamente forço-me o tempo todo por reverter esses delírios, todavia estou vestido com tesouros encontrados por aí, por ali, por lá adiante. E isso, me faz um igual, tão sem saber quanto tantos. Procuro a virtude, mas não sei encontrá-la de graça, não vim ser santo, mas queria.
Mentira quem diz que querer é poder, nem sempre quando quero tenho confiança, e quando sou poderoso não tenho mais o que buscar, nem acreditam em mim. Mas não crêem mesmo quando sou, porque me apontam como falsário. Se vou a igreja me condenam, se não vou me emporcalham. Se sou justo, encontram uma maneira de sobrepujar a justiça. Se injusto, ironizam.
É o que digo: um opressor, oprimido, gado desgarrado, onça presa em jaula, pássaro sem bico, teatro sem palco, fome sem estômago, criança sem útero, homem de coração que não sabe mais sentir, nem com a razão eu penso, nem em cativeiros fico preso, nem meus olhos servem pra ver... Que pessoa eu sou, se não posso contar com as outras?
A qual marginalidade estão se dirigindo e o que é marginal, se não compreendo porque o homem é menos homem quando visto por um deles do alto; se a regra serve somente para enfeitar os desejos de quem as faz; de qual lado devo ficar, do irmão de raça pura ou do outro que é mistura, do bem, do mal, da fissura? Quem vai poder me aplaudir, se não sou compromissado com o entretenimento e o equívoco banal? Eu não quero palmas falsas, nem moeda segura nos dedos, que por mais dedos que passaram, que até foram roubadas e de troco foram dadas, eu não quero se não for pra sair de alma limpa e restaurar com meu sono a esperança de um dia morrer
de vez.
Canção (blues)
E o gato miou
O cão se fartou
O rato compôs
A canção para Deus
E Deus suscitou
Ao anjo maldito
A reza sem fé
Cadê, minha prima
A mãe que me amou?
Que Deus era Ele
Quando castigou
E o rato miou
O cão recompôs
O gato fartou
E a reza maldita
Ao Deus sem fé
O anjo suscitou
Cadê, minha mãe
A prima que me amou
Que castigo era quando
Ele Deus
Me deixou !
5 . EPÍLOGO DA OPRESSORA
(Ator se transformando em Constantina)
Agora, atendendo a inúmeros pedidos deixarei uma música tocando enquanto realizo uma pequena transformação pessoal; apenas porque devo atender os pedidos de meus fãs ardorosos. Não vou sair de cena, para que não pensem que houve troca de ator ou fui à busca de algum truque desses utilizados por amadores mesquinhos que buscam somente a realização pessoal numa vaidade incrível de artimanhas pouco ortodoxas. Na verdade, nem sei são capazes de entender o que estou tentando dizer, mas de qualquer maneira isso só vale a pena ser compreendido se todos os envolvidos alcançaram o raciocínio do nosso humilde espetáculo... (Ao músico) Toque! (Ao público) não demoro muito pra trocar de roupa e fazer a maquiagem, não se preocupem. O figurinista optou por esse tecido estampando elucubrando que ISTO explicaria simbolicamente a alma, a composição da personagem em questão. Eu, achando que poderia auxiliar, dei uns palpites do tipo: e se a gente optasse por não vestir e ficássemos com a verdade interior? Soou como uma bomba. O referido figurinista berrou, chorou, teve um ataque de dança do ventre misturado com sapateado espanhol. O diretor, meu amigo e confidente, botou panos quentes e eu, enfim, obedeci às exigências. Na verdade era só uma idéia para ser discutida, acabou sendo imposta. Já me habituei, nesta cena final, a vestir a personagem, literalmente. O que estão vendo aqui, nascendo a olhos nus, era inicialmente Conchetta. Ficamos sabendo que Conchettas havia aos montes por aí; na TV nem se fala, era quase uma invasão e para nós, sem fama e glória restaria a critica de plagiadores. Então, Conchetta virou Constantina. (Já quase pronto) O opressor também pode estar presente nas mães, nessas mães aí comuns, do dia a dia, que julgam fazer um ótimo trabalho com a educação de seus filhos. As mais econômicas são as turcas narigudas, as inglesas castradoras, as russas medrosas, as francesas permissivas, as alemãs loiras, as brasileiras mixagenadas, as africanas descalças, as portuguesas de Portugal, enfim, quase todas as mães são objeto de estudos intensos por psicólogos e psiquiatras e sociólogos e geólogos de todo mundo. Mas eu conheço uma que de tão doce e crente no melhor pra seus filhos, é a mais castradora de todas as mães, ou pelo menos, foi. Ela é o que podemos chamar de virtuosa. Italiana, radicada no Brasil, onde se enraízam toda espécie de fauna e flora humana da terra. (Ao músico) Ok, pode parar de tocar agora e dê o tom para Constantina. (Mutação) Má que? Que que tá pensando você? Que io nasci assim gordona, sardável? Vá, vá... são tudo tan tan, isso que oces são... Fiquei desse tamanho por causa da minha história cheia de pobrema e poca felicidade, isso que é. Má que é de gosto regalo da vida, né memo? Eu sou uma patsa, energumena ... e to falando dos meus fio. Cada um tomo seu rumo e me dexo aqui prantada como uma bananera que já deu cacho. Eu me criei os menino com as pasta de melho qualidade. E os fia da puta fora ficando grande, arranjando suas cosa pra faze e me deram um pe na bunda, foi o que fizero. O mais vechio, O Fernandinho me arranjo um traste de uma cadelona e me foi embora pra nem sei donde. Queria se vê livre da mama, ele disse, na minha cara, eu to de picuá cheio da senhora, mama, a senhora só que mandá, mandá... Io? Uma mama simplória, amável, uma santa... que deu o sangue pra cada um deles e recebi em troca um bom adio, bella. Depois foi a vez do Geronimo, aquele ingrato, deu as descurpa de que ia estudá na Itália porque podia tirar recibo de cidadão por seu fio de italiana. Me usou, quelo ingrato, até na hora de me abandoná. Má que coisa, outro que não soube dá valor aos suor da minha testa. O terceiro, o Benedetto, se enfiou nesses troço de televisão, sabe esses menino que pega os cabo e fica correndo atrás de cá pra lá... (rindo) Uma vez vi a dona Ana Maria pegando o coitado do Benedetto segurando os cabo da firmadora, ela se ria como uma loca. Esse pelo meno as vez eu vejo pela televisão. Trabaia na Grobo, poverelo. Segurando os cabo. Má que vidinha medíocre eles me escoeiram. Depois de tanta massa e porpeta. E não foi por farta de educação, que io peguei nos pés deles, viu? Peguei memo. Fiz ir pra escola, arrumava eles tudo de camisinha branquinha, shortinho azule, má que lindos que eles era. O mio quarto fio, aquele sim, escolheu o melhor destino. (canta)
Ai, madona mia, que espeto o fim da vida
Ai, madona mia, me manda aqui, uma sanfona
Ai, madona mia, quero cantar toda minha tristeza
Ai, toca os baixo, faz uma baruio pra eu cantá
(fim da cancioneta)
Io cantava anssim pro Luige, meu pequeno Luige... ele sorria com aquela cara de monstro. Ele nasceu anssim, poverelo, de tanto que o pai dele me encheu de porrada quando ele tava aqui na minha barriga. Antonello bebia um vinho que Dio me livre, nossa senhora, madona. Bebia feito em condenado. E me batia. Assim do nada. Me batia. E eu, gravidona do rapazinho. Eu ficava de noite, gemendo nos cantos e rezava pra ele: fio meu do meu coração, não liga pra tio padre, non. Ele no fundo é um homem bono. E ficava firme, ali, nos canto, até amanhecer e chegar a hora de passar o café pro vechio ir pro trabaio. E quem disse que ele tomava café? Tomava era dois os três copo de vinho, logo de manhã, enchia a cara logo de manhã. Então eu dava uns safanão nos menino pra eles acordar. Vai seus molegão, hora de ir pra escola, Geronimo, acorda Benedetto, enfia as carça Fernandinho... e ai daquele que não me obedecia eu lascava o cinto, até criar uns vergão desse tamanho nas perna. Eco! Io nunca bati nas barriga ou nas costa, era só nas perna. Má eu dava com vontade, viu? Era cada vergão assim. Hoje io sei que eu descontava nos fio os tapa que eu levava do pai. Que dó que me tenho, uma paixão, Dio mio. As vez eu converso aqui cós meu botão: será que ele foro embora por causa das cintada? No sei, no sei de nada. Me lembro do dia que Luige nasceu, tão fraquinho, suzinho comigo aqui, eu baxei as carça, sentada no sofá e ele nasceu. Fiquei um dia intero sentada, escorrendo vida pelas minhas perna, sem corage pra levantar e cortar o cordão do menino. Parecia que io ia morrer se cortasse o cordão, io e o pequeno que precisava de sua mama. Era um bebezinho fraco, magrinho, non movia as mão, respirava com dificurdade... Antonello veio de tarde, caindo de bebido, olhou pra noi duo sentado no sofá e falou: vai arruma a minha janta, égua vechia. Nem viu o nostro fio no meu colo. A dona Olga veio cortar os cordão do menino... ele viveu ainda muitos ano comigo. Era só meu, o poverelo.
(canta) Ai, madona mia, que espeto o fim da vida
Ai, madona mia, me manda aqui, uma sanfona
Ai, madona mia, quero cantar toda minha tristeza
Ai, toca os baixo, faz uma baruio pra eu cantá
Um dia, Antonello pegou uma troxa de roupa e falou que ia morar com outra muié, mais carma, mais nova e que io me virasse como podia. Depois foram os fio embora. E por urtimo, me foi o Luige... numa noite, io tava amassando pão e ouvi: mama! Io me virei os oios pra drento da casa e depois olhei pra cima, pedindo que Dio continuasse carregando meu fio nos braço, e vortei pra massa. Vortei pra massa.
Será que non fui uma bona mama? Hum? Não devo ter sido, porque me deixaram suzinha, não é? Io me lembro da minha Itália, minha mama era caladona, o papa nunca me fez um carinho... quando viemo pro Brasir, io... Non, non quero me ficá lembrando. Vão embora, per favore, antes que io começo chorar. Non quero que ninguém tenha dó de mim. Io non mereço.
Ademir Esteves
Junho 2006
SANTO CANTO DO ARTISTA
Cordelato imaginado em dia de lua branca
Por Ademir Esteves
Todos os direitos reservados – registro CN
Direto com o autor
Ademir Esteves – 16 98159 2370 – 3626 5089
Personagens
PRIMEIRO
SANTO (também cantador, rainha Batista)
SEGUNDO
SANTO (também cantador, ladrão do trono)
TERCEIRO
SANTO (também cantador, namorado de Batista)
CANTADORES
A viola toca um tango
A sanfona uma toada
O piano é flauta doce
pro artista da estrada
{ Ô coragem não se finda
Predisse a mim minha dinda
Vai te embora guri novo
Já se chocou de seu ovo } REFRÃO
Na carreira pés descalços
Onça vibra o cheiro d´água
Mas o homem que declama
se afasta dessa mágoa
REFRÃO
Vem
mansinho de poeta
Coração
pulando a ponte
Faz da
vida a liberdade
Me
alimento nessa fonte
REFRÃO
PRIMEIRO
SANTO
Diga povo caridoso, que tem fé de gente boa, onde fica
a rua torta onde a cruz fincada é marca pros joelhos se deitar? É lá que
fazemos reza, pro artista andarilho com força na fé dos Altos à arte se
entregar.
SEGUNDO
SANTO
E depois da ave Maria, começamos a função: canto,
dança, rima farta e grande interpretação. Tem aí a sacolinha, e não vou mentir
pro’cês não: qualquer ajuda de custo auxilia a companhia e empresta a Nosso
Senhor. A paga de contrapartida é o meu, o deles o suor, de agradar sem
hipocrisia aos senhores, freguesia.
TERCEIRO
SANTO
A mim cabe fazer
apresentações: esse ali é o Primeiro Santo, que a cruz pros joelhos procura...
O outro é Segundo Santo sempre orando
Ave Maria ... Eu de mim chamado Terceiro, também lindinho Santo como os primeiros;
nenhum dos três canonizados pela Igreja ou por atos milagreiros. Porém, Santos
artistas, santos são por primazia, pois: que mais homens poetados são por
natureza, emprestados pelos céus aqui pra Terra com honrarias e louvor, de mãos
dadas com o Criador?
CANTAM
Ei que sem aperceber estamos na praça certa
Os joelhos dobram cá
A reza na cabeça se dá
E o evento se acerca
Da história a se contar
A rainha de outras bandas
Alcunhada por Batista
Convidou os três reis santos
Pra divulgar sua vida
Entre outras vidas tantas
Ai de nós que não desista
De espalhar pros quatro cantos
A Batista revivida
CANTAM
SEGUNDO E TERCEIRO SANTOS ENQUANTO PRIMEIRO SE VESTE DE RAINHA BATISTA
Senhora de trono vermelho
Milagroso onde sentava
Redigia suas cartas
Com batom sobre espelho
A lei era dar comida
Água e leite aos populares ditos
Seus seguidores súditos
Por eles admirada e por alma redimida
RAINHA
BATISTA
Hoje acordei com os galos, e pensando na alegria que
me falta dia a dia. (com um espelho na
mão, escreve nele com batom). Mas darei ao povo o que não tenho: um bocado de energia, arroz sem marinheiro aos
que constroem as torres do mundo. Feijão sem torrão de lama aos que pescam em
rio profundo. (Assina e guarda o espelho
e o batom dentro do trono, sob o assento). A mim me deem um leitãozinho,
que estou salivando por torresmo e deixem pururucá... Está aí o meu
jantar! Cadê o meu namorado, Trajano de Ceará?
LADRÃO DO
TRONO
Ih, rainha, majestade... (consigo) Não boto nele muita fé; melhor me manter calado . (a
Ela) Aquele tá com bicho de pé, se coça ainda na cama com a ponta da lança de
matar veado.
RAINHA
BATISTA
Caçador de meia tigela; nem de longe em qualquer
tempo, espetou um deles sequer.
LADRÃO DO
TRONO
E foi! A não ser quando varou a barriga do Arauto no
segundo que o coitado anunciou: (com voz
fina e efeminada) “Atenção, Batistenses, fiéis escudeiros da Rainha, está
além dos portões os chefes de estado de outros estados...” e zing, foi furado
pelo Namorado.
RAINHA
BATISTA
Nesse caso, pobre Arauto, entrou mesmo pelo cano,
confundido por gazela por meu namorado Trajano.
ENTRA
TRAJANO, NAMORADO DE BATISTA.
NAMORADO
DE BATISTA
Bons dias, sedutora ... Olha que zorra, um pé que coça
como urtiga.
Do bicho que nele habita. Coço, coço e esse troço aumenta
‘inda mais de comichão o dedão; vai subindo pelas pernas, passando pelo espadão
e arrepia a minha mão. Rainha, namorada, decrete o banimento do bicho de pé do
reino e peçam que sirvam meu café!
RAINHA
BATISTA
Café, sêo Zé Trajano? Já se almoçou em todo Reino.
NAMORADO
DE BATISTA
Tomo meu café quando bem quero, e não me venha com
farelo. Avise a criadagem que só me farto com bolo e caramelo. Certo?
RAINHA
BATISTA
Errado! Doravante, eis o fato: ou acorda com o sol e
trabalha como gente, ou cai fora desse reino e se vire, vá em frente.
NAMORADO
DE BATISTA
Assim trata quem só com beijos te ataca? Muito me
custa saber que a bondosa Batista, depois de usar o trapo o joga ao meio da
pista. Sou eu um grande artista, rainha do trono mágico. Não preciso de suas
ordens pra sentir o meu fim trágico. (chora aos pulos)
RAINHA BATISTA
Esse choro é conhecido!
NAMORADO
DE BATISTA
É um prato merecido...
RAINHA
BATISTA
Deixa disso, Zé Trajano... fartei dessa criancice,
entra ano e sai ano...
NAMORADO
DE BATISTA
...já não tenho sua meiguice.
RAINHA
BATISTA (Levanta e faz um pedido ao trono. Pode ser cantado)
Trono
vermelho, meu zelo, protetor de meu reinado,
Nunca ousei
usar seus truques ao benefício de meu prazer
Mas o choro
do ex-namorado necessito arrefecer
Dê-me um
lenço, um pão com vinho.
Com lenço enxugam-se
as gotas de crocodilo
O pão e o
vinho que vá cear lá no vizinho...
(O ASSENTO
DO TRONO SE ABRE E NO AR SOBEM O LENÇO, O PÃO E O VINHO. O ASSENTO SE FECHA. A
RAINHA SENTA)
RAINHA
BATISTA
Aí estão seus pertences! Segue agora seu caminho.
NAMORADO
DE BATISTA
Nunca mais o seu carinho?
RAINHA
BATISTA
Há muito somos distantes, e se sonhou um dia ser rei,
perdeu o sonho dormindo enquanto o mundo produzia. Faço isto com alegria! Você
está mais que na idade, de conquistar seu destino... e tem que ser na liberdade.
Aqui é um falso caçador, que por interesse medíocre, prometeu-me grande amor.
Esta alegria, no entanto, vem misturada com a tristeza. De saber que da Rainha,
só buscava a riqueza. (saindo) Deveres me esperam lá dentro. Quando voltar ao
trono, não o quero mais aqui e nem peço notícias ao vento. (Sai)
NAMORADO
DE BATISTA (canta)
Ai que fiz
da minha vida?
Nada de mim
ora é visto
Por quem
sou, a despedida
Torna-me
ambulante previsto.
Não sei
falar de política
Analfabeto
de ideias
Me calo sem
fazer crítica
Sem ter
mesmo as falas prévias.
Tosco rosto
emplaco a máscara
Merecido
bota fora
Esgueirando
vou-me indo, que não vejam minha cara
É chegada
minha hora. (saindo)
LADRÃO DO
TRONO
Já vai tarde, Namorado: Trajano do Ceará; geografia
tão longínqua que já me cansa o corpinho no mapa o estado achar...
NAMORADO
DE BATISTA
Conhecer o mundo pelos mapas é mais fácil que urinar.
Quero ver é ir à terra, cada qual em seu lugar, buscar as dores que sofrem o burgo
a viver lá. Sentir na pele as belezas baralhadas com tristezas, a fome e
separatismo que aparecem pelas mesas...
LADRÃO DO
TRONO
Quero que o p, ó, v, ó se dane, apenas comete vexame.
Cultura importada, dinheiro no bolso, jantar de arquimilionário é pra mim o
importante. Enfim a Rainha está só.
NAMORADO
DE BATISTA
Aproveita, te conheço... você não me engana, é do pó!
Do sujo metido a ordeiro, com jeito de homem sincero
E humilde servo do trono. Seu destino já tem dono: e
se chama xilindró!
LADRÃO DO
TRONO
Vai, sai daqui escorraçado. Vá dormir sob o relento. Ah! De alegria
arrebento... Livre dessa preguiça, dormida na idiotice de um Zé Ninguém, sem
vintém. E não olhe desse jeito, que isso não me atiça. Tenho cargo, malandro.
Agora chegou minha vez.
NAMORADO
DE BATISTA
Pois aproveite, vire freguês. Mas corra bem depressa,
antes que eu conte até dez... Bem perto ficarei pra assistir o revés. Quem não
te conhece, te compre. Um dia a verdade irrompe; aí é maior a condenação... A
Rainha Batista é do cacete, com ela não tem mensalão: tem a vontade do povo; governa com o coração.
LADRÃO DO
TRONO
Blá, blá, blás... depois de expulso resolveu
politicar? Essa Batista esquerdista não governa com ideias, porque tem o trono
da magia. Sabedoria tenho eu, que sabedor dos segredos, continuo na vigia. Um
passo fora do compasso, notarão a minha alegria. Agora xô, morador de nenhum
lugar, suma de nossas vistas... basta de cacarejar.
NAMORADO SAI
CABISBAIXO. MÚSICA.
NO CANTO
DIREITO RAINHA BATISTA. NO ESQUERDO O
NAMORADO.
CADA UM
CANTA A SEU TEMPO ENQUANTO O SEGUNDO SANTO VIRA O ESPADALDAR DO TRONO PARA
FRENTE. AGORA O QUE ERA TRONO SE TANSFORMA NA ESTÁTUA (OS GUERREIROS, MAIS
CONHECIDA COMO OS CANDANGOS, DO ARTISTA BRUNO GIORGI, DA PRAÇA DOS 3 PODERES EM
BRASÍLIA)
CANÇÃO
RAINHA
BATISTA
Mandei
embora o meu namorado
Foi para o
bem, foi para o bem
Sofrer eu
vou um bom bocado
Mas eu
mandei, mandei foi pra seu bem...
NAMORADO
DE BATISTA
Minha
rainha, agora para onde?
Como Josés
sem canto, nenhum rumo
Melhor ficar
atento vê se esconde,
Fique atento
Trajano, tome prumo
RAINHA
BATISTA
Mandei
embora o meu namorado
Foi para o
bem, foi para o bem
Sofrer eu
vou um bom bocado
Mas eu
mandei, mandei foi pra seu bem...
LADRÃO DO
TRONO
Faz muito
tempo que eu pasto feito boi
Submissão,
curvado como um cão
Chegou a vez
de mostrar como é que foi
Que desse
trono eu virei ladrão
RAINHA
BATISTA
Mandei
embora o meu namorado
Foi para o
bem, foi para o bem
Sofrer eu
vou um bom bocado
Mas eu
mandei, mandei foi pra seu bem...
NAMORADO
DE BATISTA
Nada de ir,
eu ficarei
Esconderei-me
na sala de reunião...
RAINHA
BATISTA
Será que o
amor é como uma canção,
Solando
notas na boca de um rei?
LADRÃO DO
TRONO
Passar a
mão, usar a magia do trono
Ordeno que
se faça um transtorno
Impostos
altos e comida ao soberano
Os três
poderes são o meu contorno
RAINHA
BATISTA
Amor... o
que é de mim?
NAMORADO
DE BATISTA
Se é de
verdade não é o fim...
LADRÃO DO
TRONO
Sou magnata,
até que enfim
RAINHA
BATISTA
Se é de
verdade não tem um fim
NAMORADO
DE BATISTA
Amor... o
que é de mim?
LADRÃO DO
TRONO
Jagunço e
escravos renderão-se a mim...
OS TRÊS (NUM
CANON)
Lari, lari,
larê
E ô, e ô,
Santéu
Faz oração
pra eu, reza pra eu
Benzer-me
pelo céu!
O NAMORADO
SE ESCONDE. O LADRÃO PERCEBE A ENTRADA DA RAINHA E ARREGALA OS OLHOS E A BOCA,
APONTANDO COM UM DEDO PARA ONDE DEVERIA ESTAR O TRONO.
RAINHA
BATISTA
Trajano saiu de vez? Ah! Não sabe o quanto me aperta o
peito... Cometi um erro, talvez?! (inspira) De qualquer forma não havia outro
jeito. (Percebe o Ladrão) Mas o que é? Que cara é essa? Vamos, desemudeça...
Rapaz, fale o que houve. Não canse minha boa fé. Que há, algum transtorno?
LADRÃO DO TRONO (instigando)
Isso foi coisa do Zé... ele levou o trono!
RAINHA
BATISTA (percebe a ausência do trono)
Miserável, cascavel... Urubu ababelável... Canastrão
insuportável. Ai, se te pego, insano, te amarroto feito pano. Não serei tão
piedosa com o safado Zé Trajano. (De repente) Como sabe que foi ele que roubou
o trono?
LADRÃO DO
TRONO (SORRINDO, COMEÇA A SER ARDILOSO)
Em que momento, senhora, afirmei tal heresia?
Suspeitei somente! Ninguém sem provas acusarei.
RAINHA
BATISTA
Pois trate de levar o batalhão e trazê-lo aqui de
volta. Que o povo não saiba de nada hão de ingressar numa revolta. O que
espera? Seja breve...
LADRÃO DO TRONO
Por delicadeza, seja leve. Nenhuma coisa é mais
inoportuna, por exemplo, que receber ordens de uma rainha descuidada.
RAINHA BATISTA
Como se atreve? Sempre fui ajuizada.
LADRÃO DO
TRONO
O ministério tomará o cuidado de reaver tamanho caso.
Quem adentrou em seu quarto um artista desregrado? Não fui eu... não foi o
povo... a notícia desse roubo e do abandono do amor soará em desagrado. E quem
poderia negar uma nobre combinação?
RAINHA
BATISTA
O senhor está me apontando como ré na acusação? Que
formulei um acordo com o namorado pra trair minha nação?
LADRÃO DO
TRONO
Amigo é quem avisa.
(oferece uma taça aparentemente com água a ela, a rainha bebe, trêmula e
confusa). O silêncio sobre o caso,
seria a melhor medida. Ficamos nós dois quietos, eu humilde assessor, busco com
afinco o meliante e a rainha concordando com isto, após tudo resolvido
nomeia-me primeiro ministro. Não acha justo e louvável?
RAINHA
BATISTA
Mais me parece um conchavo ou algo muito obscuro. Contudo
diante do impasse, me parece razoável. Não tenho alento agora. Pense na
solução... a vertigem me ataca. Volto em uma hora. (entrega-lhe a taça e sai).
LADRÃO DO
TRONO
Uma hora, minha senhora? Vai vendo o que te espera... A
água sorvida em goles, tratada com lenientes, sedativos poderosos, a prenderá
sobre a cama. (Irônico) Não, não
seja tão magnânima, Batista de meus encantos... Ao pavio ateio a chama e não
lamento sua ida, estará tão desmaiada quanto a Bela Adormecida. Dormindo por
meses a fio, como se morta estivesse, a guisa de porções lilases de mandrágoras
fétidas, é o tempo que preciso para tomar posse ao assento sólio: nomeio-me em
nome do Deus, que sou eu mesmo, Rei da
era moderna com a tirania de um Demônio e a destreza de um Mago. Ao povo darei
a bílis dos ratos mortos nos guetos, o gosto será amargo, todavia me deleito
com a populácia me sendo grata, enquanto dia após dia mergulho em piscina repleta
com ouro e prata. (Dominado pelo poder
cingi uma coroa quase Papal à cabeça)
MÚSICA. O
TRONO VIRA-SE DE FRENTE.
ABRE
LENTAMENTE O ASSENTO.
O LADRÃO, SUNTUOSO ENTRA NO TRONO, UMA FUMAÇA
O ENVOLVE. OUVIMOS SUA VOZ AUTORITÁRIA, DEPOIS ELE DESAPARECE ABAIXANDO-SE PRA
DENTRO DA BANCADA.
LADRÃO DO
TRONO
Sem conclaves, queridinhos, já sou o Papa de todas as
religiões. E que elas juntas se dizimem... Crio a nova crença chamada Santo
Ladrão e de imediato, conclamo: Coloquem no chão as favelas... mutilem os
operários... castrem a raças negras, amarelas, vermelhas, pardas para não
reprodução... humilhem os mendigos, enxotem os drogados, amarrem os
homossexuais a uma bíblia gigante, dê poderes por certo tempo aos pastores que
me repassarão seus dízimos, cobrem impostos diários, tragam a riqueza pra cá.
Só me deixem os grandes endinheirados na mesa dos meus jantares... Riremos
juntos com vinho, recebendo minha propina para a continuidade de seus negócios.
O planeta é maior pra mim, só meu, de mais ninguém. Nem o Criador é páreo
porque o que move o mundo sou eu! Do mundo recebo o universo, encontro Deus
fugindo da minha armada e morre com bala na nuca. A herança herdada por mim,
seu filho menos amado, mas único que o enfrentou. Amém, amém, amém... (ri)
SILÊNCIO. MÚSICA LEVE VAI SURGINDO. O TRONO ESTÁ COBERTO POR TECIDOS
VERMELHOS E DOURADOS. AO FUNDO VEMOS O RETRATO DO LADRÃO DO TRONO COM UMA CARA
DESTORCIDA, BIGODINHO DE HITLER E CORÔA “PAPAL” DE PAPELÃO. É ASSIM QUE ELE APARECE EM CENA DEPOIS.
PRIMEIRO
SANTO
E agora, nessa praça, onde céu e terra ungem de beleza
o que era feio, contaremos bem depressa do final o que foi feito.
TERCEIRO
SANTO
A Rainha desprezada, dormindo sem saber nada, pelo
povo condenada a morrer na cruz pregada. Porém, por que a tal conclusão a esse ponto chegou?
PRIMEIRO
SANTO
É o que queremos narrar, nesse tempo o que passou.
O ladrão do Trono, nosso conhecido, na sacada do
Castelo, delatou:
LADRÃO DO
TRONO (SOBRE UM BANQUINHO, TOCA E CANTA)
A MONARCA, GENTE MINHA
ENTREGOU-SE A CONVERSAS
E O TRONO DEFRAUDADO POR SEI LÁ QUAL ARMADILHA
DO DESTINO OU PROPINADA COMISÃO
DESCONFIO, DESCONFIO, ENTANTO NÃO TENHO PROVAS
DE TAMANHA CONFUSÃO!
É MEU AGORA O QUE ELA TINHA
TRANCOU-SE EM SEU QUARTO
FEITO MOÇA MIMADINHA.
O NAMORADO A DEIXOU, PORQUE ELA TEM BAFO DE ONÇA
E A MIM SOBROU CONTINUAR A REINAR, E O FAÇO COM HONRA.
ANTES DE IR SE ESCONDER, BATISTA FEZ MAGIA E CAIU NO SONO
ASSINOU LEIS ESCRITAS
NOS ESPELHOS DO ABANDONO.
TERCEIRO
SANTO
Mas a Rainha Batista sempre foi por seu povo
admirada...
PRIMEIRO
SANTO
Como agora, de repente, se propaga essa cagada?
TERCEIRO
SANTO
Não se podem apagar os decretos nos espelhos? Ao que
saiba são escritos com batons rubros, vermelhos...
LADRÃO DO
TRONO
A isso posso
responder: mesmo que se destruam as letras lá tingidas, o espelho para sempre
refletirá o documento. Portanto, não há como limpar, olvidar, ou quebrar o
cristal dos reflexos... lamento! Eu, como soberanamente perfeito, um anjo de
gratidão, não quero cumprir as ordens, todavia se não cumpro viro comida de
cão. Conto com sua benção, meu amado e querido aldeão.
PRIMEIRO
SANTO
Então, quais são as ordens por ela estabelecidas?
O LADRÃO DO
TRONO ATIRA O QUE PARECE SER UM ESPELHO PARA AS MÃOS DO TERCEIRO SANTO. LADRÃO
E PRIMEIRO SANTO RETIRAM-SE DE CENA ENQUANTO TERCEIRO LÊ.
TERCEIRO
SANTO
Leis por mim constituídas:
1 – doravante,
toda essa raça chamada de súditos, sujeitinhos da desgraça,
Que se virem pra conseguir comida, diversão e arte
Que vivam como quiser, desde que paguem bem pelo ar
que se comparte.
2 – não me encham mais o saco, sou Rainha
soberana,
Nem te ligo povo imundo, quero mesmo é minha grana.
3 – vão todos pro meio do inferno, eu fico no luxo e
no banho,
Tomado em baldes de ouro que a cada segundo arrebanho.
4- se um dia fui boazinha, era só encenação
Hoje quero que se fodam e apodreçam no caixão.
5 – envio exército com corrente, chicotes pra açoitar
Cada homem, mulher ou criança necessita 12 horas
trabalhar
6 – o que da terra colherem no Palácio irá ficar,
Atirarei pelas janelas do meu prato o que sobrar.
7 – cada revolta do burgo o chicote aliciará
E se isso não der submissão, a espada o educará.
8 – é lei, definitiva, que meu Primeiro Ministro a
tudo chefiará
É ele que traz o espelho aonde princípios examinará.
9- no nove concluo o decreto, pois não são mais 10 os mandamentos.
O ministro é o novo Deus, lhe coroei com unguentos
Obedeçam, temam a ele, eu exijo e aconselho
Esse homem é o que impera, fiquem a ele de joelho
Não aceito revolução, é o mínimo que espero
Senão em fogo morrerão pela fagulha do neófito Nero.
(ATIRA O
ESPELHO PRA LONGE. CABISBAIXO PÕE-SE A CHORAR)
Meu amado reino... Somos muitos, vamos juntos nos
alistar e às escondidas reunir
Pra essa lei avaliar. (OUVE UM BURBURINHO DO POVO) é isso mesmo que desejam? A Batista,
amada como a Jesus, agora é odiada e queremos ela na cruz? Então pintemos a
cara, com armas e dragões invadiremos as muralhas e lá no alto da montanha
martelamos a Batista numa cruz feita de escarra. Cada um cuspa o veneno do ódio
e da vingança, saliva no barro, barro e sal, molde o obelisco e tragam também
os carapetões, pisaremos o soldado raso e os fedorentos capitães. Morte a
Rainha Batista por ter se vendido por metal amarelo e escravizado sua povoação.
Não se come caramelo, mas se vinga o coração.
MÚSICA
ARDENTE E FORTE.
RAINHA
BATISTA
(ENTRA
CAMBALEANDO, DESPERTANDO DO SONO. VEM
ENROLADA EM VÉUS COMO SE TIVESSE CRIADO TEIAS DE ARANHA).
Que é de meu trono, de meus espelhos? Ocultaram-me os
batons e as escovas dos cabelos. Tenho fome... Sede tenho. ‘inda em sono me
retenho.
(mais fraca
e dobrada como uma velha doente)
Incauto homem, Ladrão do Trono de uma Batista Rainha
Ver em mim alguém podia a verdadeira ideologia.
Mas ao roubar-me o assento, levou com ele meus
decretos, meus tesouros e a magia.
Agora o povo rodeia, tingindo de pranto vermelho a
desconfiança.
E já não tenho espelhos para assinar as leis
Nem avistar meus sorrisos de quando luto pela verdade.
Quando me afastam, levam-me longe da razão e me trazem
a tirania.
Apanhem do trono o larápio
E eu de novo reino com a comunhão da justiça!
(canta com melodia triste. E os outros Santos fazem
ecos ao final das frases musicais)
Ó,
imerso mundo onde,
Rebeldia
é faz de conta
Pra
tirar da real conta
O
vagabundo que esconde
Esse
guarda para si
Os
mistérios que há por vir
Em
tempo certo colorir
Daquilo
que decidi...
Vai,
meu povo, crie asa
Não
somente há minhas falas
Há
também suas palavras
Na
morada dessa casa
Mente
plena, inteligência
Luta
agreste ou asfaltada
Junte o
braço em continência
À
Rainha degradada
LADRÃO DO
TRONO
(APARECE,
DISFARÇADO COM UMA MÁSCARA E UM CAJADO NA MÃO)
RAINHA
BATISTA
Vista minha se atrapalha, vejo um homem do povo?!
LADRÃO DO
TRONO
Sou o representante da gente que destruída, decide
unânime por fim à sua vida. Venho voando como um corvo e devo levá-la urgente
para o supino calvário.
RAINHA
BATISTA
Meu bom homem, como é isso, de qual decisão te faz
destinatário?
LADRÃO DO
TRONO
Sua morte por crucificação, por conter sinistras
regras seu jogo de impetração. O novo rei é conosco, mesmo sendo um tanto
tosco.
RAINHA
BATISTA
Novo rei? Sou combatida? Pela morte preterida? De
quais regras estão falando, de que rei, cadê meu trono? Já prenderam o
Namorado? Oh, meu Deus que louco enfado!!!
(NUM ESFORÇO
SOBRE HUMANO ARRANCA A MÁSCARA DO LADRÃO)
É você, traiçoeiro? Representando o povo, o reino e a
si mesmo, depois de ter me dopado e atirado ao travesseiro. Irei agora mesmo
revelar sua conduta...
LADRÃO DO
TRONO (RINDO)
Pois vá, vá depressa sua puta! Estão todos lá no adro,
esperando por disputa quem primeiro te apedrejará. Sou eu o Jeová criador, mais
rico e poderoso e do povo salvador. Assim que estiver morta, pregada naquela
cruz, fingirei as condolências e tomarei do império aquilo que me é jus. Cadela rainha apodrecida, fada dos bons
princípios, agora ignorada e odiada por seu séquito burro e suicida.
RAINHA BATISTA
(LEVANTA UMA ADAGA)
Antes que isto aconteça, redimo com minha adaga por
ter traído meu povo, sem saber e ter amado o namorado sem nunca o conhecer.
Errei e em nome dos céus, me levo a obedecer: assim por minhas mãos, a adaga
finco ao peito... (olha com lágrimas nos olhos para a plateia) eu não quero
enlouquecer. (Finca a adaga e cai)
LADRÃO DO
TRONO
Idiota, idiota... Não é esse o seu morrer. (Alucina)
Batista está morta, Batista está morta! Meu anjo peço perdão, era muito o meu
amor e me fez endoidecer. Não a deixe ir de mim, leve-me em seu lugar. Eu conto
a verdade ao reino, Pai do céu, vem me salvar. Rainha, fui tomado por ciúmes e
o poder me alucinou... Tudo errado, errado, errado... (Mais louco) Batista está
morta... Batista está morta...
OS PANOS QUE
COBREM O TRONO SE ABREM. O RETRATO DO LADRÃO DESAPARECE. SURGE DE DENTRO DO
TRONO O NAMORADO.
NAMORADO
DE BATISTA
Sua plateia sofrida, já o ouviu réu confesso. Já disse
Patativa do Assaré
“é melhor escrever errado a coisa certa, do que
escrever certo a coisa errada”.
LADRÃO DO
TRONO
"Na vida é assim: uns armam o circo, outros batem
palma." Já entendo a armadilha...
NAMORADO
DE BATISTA
"Quando a carroça anda é que as melancias se
ajeitam." É a hora da partilha...
LADRÃO DO
TRONO
Faça o que quiser, Zé Trajano, o amor que em mim
vivia, jaz alí sem despedida.
NAMORADO
DE BATISTA
Era a mim que ela queria e de mim amor teria. (Fala como se fizesse um feitiço enquanto retira
do trono um tecido com o qual cobre a Rainha, depois lhe atira pétalas de
flores e sopra um pó sobre tudo). Saudade
do meu cavalo, de cavalgar na fazenda e chegar no córrego límpido, tomar banho
de ilusão. Nenhum cavalo eu tive, a fazenda ficou longe, o córrego cobriu-se de
concreto e meu banho inspiração, feito de água poluída e em extinção pelo
homem, com sua mão de ganância e desrespeito ao irmão.
Dementes, mas conscientes. Fomenta essa cara pálida...
Que a dor do mundo está presa na hora perdida. (Então, retira o pano com o
qual a cobriu e ela já não está mais lá). Não fico triste... Tão logo o entregue ao
julgamento do povo, irei ter com ela, sem ouro, pão ou maleta. Fui de fato seu
Romeu e ela de mim Julieta.
LADRÃO DO
TRONO
É de rir sua conversa. Dilúvio de falsos acordes...
não me engana, você organiza um contragolpe?
NAMORADO
DE BATISTA
Com golpe ou sem golpe, acho mesmo que o povo deveria
entrar pelas portas da frente e ocupar sem salários o comando do mundo.
Escolher representantes passou a ser um martírio no futuro profundo. Precisamos
do presente, do agora...
LADRÃO DO
TRONO
Cai fora, cai fora... Sei lá eu quem sou cá? Fico aqui
ou vou pra lá? Fujo, isso mesmo, fujo já!
PRIMEIRO
SANTO
Fique parado onde está. Primeiro santo o impede de
sair sem ser avaliado.
LADRÃO DO
TRONO
Um santo, devo orar? Muito bem, fico eu, embananado
por embananado permaneço avariado.
PRIMEIRO
SANTO
É com você, namorado!
NAMORADO
DE BATISTA (CANTA)
GENTE MINHA, MINHA GENTE
ALÍ ENTOCADO ESTIVE
ESPERANDO A HORA CERTA
NÃO ME OUVIRAM OS POLÍTICOS
NÃO ME RECEBERAM OS PADRES
NEM GUARDIÕES DE IGREJAS TANTAS
FUI CALUNIADO, AFRONTADO.
DO ROUBO DO TRONO ACUSADO
PROCUREI LÁ NOS CONFINS
A MISSÃO OCULTA REUNIDA
QUE DÁ AOS HOMENS ALGUNS FINS
QUANDO NA TERRA HÁ EXCEDENTE
DE SUPERPOPULAÇÃO
E NEM LÁ FUI OUVIDO
AO CONTRÁRIO, ENXOTADO COM A PROMESSA DE MORTE
JÁ NÃO POSSO FALAR
ENTÃO CANTO, CANTO SANTO
PRA TODOS A MIM ESCUTAR
POR AMOR EM DEMASIA ME PERMITO AQUI ESTAR
FUI UM HOMEM SEM CARÁTER
A ISSO PODEM JULGAR
QUANDO VI QUE NO PALÁCIO NADA TINHA A FAZER
SENÃO DORMIR, COMER E CAÇAR
MEU DOM DE ARTISTA SE ARRASTOU PR’OUTRO LUGAR
E VIVI RUDE E SOBERBO COM O PÉ SEMPRE A COÇAR.
AO PERDER POR IRONIA, MINHA BOA RAINHA
VI-ME PRONTO PRA LUTAR, CONTRA O MAU E A HERESIA.
ELE É O LADRÃO DO TRONO, ESSE CRUEL CATIVANTE
ELA, RAINHA DORMIDA, POR ERVAS ENVELHECIDAS
NADA SABIA DE SEU
POR ISSO CANTO
SANTO CANTO DE ARTISTA
QUE PODE COM SUA VOZ ERGUER DO CHÃO A MISÉRIA
E CONDUZIR MULTIDÕES
O BEM MAIOR, SEM DESPREZO AOS QUE REINAM COM IRMANDADE
ESTÁ ALÉM DESSE MUNDO, E PROMETE ETERNIDADE
EU CANTO, CANTO DE NOVO
O NOVO QUE O PRANTO CANTA
O INFINITO DO RISO, NO CANTO SEM IMPROVISO
A VERDADE DESSE CANTO
É SANTO COMO O ARTISTA
PLATEIA UNIDA EM CÔRO
CANTA A OBRA E PÕE A VISTA
AO HORIZONTE SE VÊ
NOVA LUZ, UM NOVO DIA
SANTO CANTO DO ARTISTA
DÁ VOZ AO QUE SE PODIA
E SORRISO NA CONQUISTA!
O NAMORADO
PEGA A ADAGA QUE FICOU NO CHÃO. ENTRA NO TRONO. EMPUNHA ALTO A ADAGA.
NAMORADO
DE BATISTA
Oh! Espada nua, tingida de brilho opaco: finca o
vento!
Pois meu ventre, sem espaço, está ferido pelo amor da aurora...
DESCE A
ADAGA PARA O PEITO E DESAPARECE NO TRONO.
O TRONO VIRA
NOVAMENTE E VOLTA A IMAGEM “OS
GUERREIROS”)
LADRÃO DO
TRONO
Então... eu
continuo rei?
PRIMEIRO
SANTO (estende-lhe a mão em cumprimento)
Rei...
parabéns, el rei!
(VAI SE AFASTANDO
PARA FORA DE CENA E SUA MÃO FICA APERTANDO A DO LADRÃO E SEU BRAÇO ESTICANDO
PARA FORA. QUANDO O LADRÃO, VAIDOSO E SORRIDENTE, PERCEBE A CORDA LONGA QUE O
BRAÇO FORMOU GRITA):
LADRÃO DO
TRONO
Deus meu!!! (E
É PUXADO PELA MÃO PARA FORA DE CENA)
IMEDIATAMENTE
ENTRAM OS 3 SANTOS COMO NO COMEÇO E NUM CÔRO ALTO E CLARO PRONUNCIAM:
OS TRÊS
SANTOS
“Na mesma pedra se encontram,
Conforme o povo traduz,
Quando se nasce - uma estrela,
Quando se morre - uma cruz.
Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
‘Ponham-me a cruz no princípio...
E a luz da estrela no fim!’ "
Mario Quintana
Oh! Espada nua, tingida de
brilho opaco: finca o vento!
Pois meu ventre, sem espaço,
está ferido pelo amor da aurora...
CANTAM
A viola toca um tango
A sanfona uma toada
O piano é flauta doce
pro artista da estrada
{ Ô coragem não se finda
Predisse a mim minha dinda
Vai te embora guri novo
Já se chocou de seu ovo } REFRÃO
Na carreira pés descalços
Onça vibra o cheiro d´água
Mas o homem que declama
se afasta dessa mágoa
REFRÃO
Vem
mansinho de poeta
Coração
pulando a ponte
Faz da
vida a liberdade
Me
alimento nessa fonte
REFRÃO
Fim / Março de 2013
Ademir Esteves
Convite
para um chá com Deus
Por Ademir Esteves
Registro CN
Liberação de montagem com o
autor:
16 3626 5090/ 99147 9958
Em dois ambientes: o quarto
sombrio e a sala de jantar numa pequena casa no interior profundo do País.
Personagens:
Clara - perto
de 40 anos
Melina
Gabriela (Meg) - perto dos 50 anos
Nair - mais de
40 anos, não aparente
Divina -
mulata de 25/27 anos
Tia Lúcia -
uma senhora
Francis –
jovem e bela, exatamente como no dia de sua morte. Sua participação é isolada e
solitária
Cena 1 –na
sala/ no quarto
Na sala Tia Lúcia preenche um
relatório num pedaço de papel. Depois segue para o quarto ao encontro de
Divina. Clara vem do quarto, prepara o
medicamento de Meg e volta para o quarto.
Clara -
Estive pensando, Meg, se por um
descuido do acaso eu tivesse tido uma oportunidade brilhante de ser feliz, como
me veria?
Meg –
Oh, que pergunta, Clara! Não sei.
Nesse instante não me valeria saber, pouco vejo, você sabe. Ahn! Muito provável
que eu a observasse um pouco mais, certamente haveria uma luz terrível saindo
de seus olhos. Mas, se é assim, assim fica, meu bem.
Clara – (num
suspiro)
Foi onde errei: não experimentar
todas as luzes. E não digo das que via através da cortina - entretanto
existiram poucas que me instigaram - queria ter podido ir atrás das pequenas
faíscas que alguns homens deixam como rastros ligeiros. Não quis o nosso Amado
Deus que esses olhos jorrassem, nem ao menos filetes opacos de lâmpada
queimando, e sim, e quantas vezes, jorrassem lágrimas. Você pode questionar a
tristeza que investe todo meu comportamento prosaico, pode até pactuar o
sentimento, logicamente não poderá sentir como eu sinto,
finalmente pode servir de consolo, mas nunca conseguirá compreender.
Meg–
Houve um dia, Clara, um dia
quente, estávamos na fazenda do tio Lilo, e mamãe tocava no piano Romance de
Amor... não se lembra? E você, mirrada e paciente sobre a cadeira de palhas
pendurada, solevava os pés de encontro ao chão e de novo no ar, havia uma expressão tão piedosa em seu rosto
que todo meu coração se apaixonou definitivamente. E vieram as milagrosas
palavras no pensamento “como amo minha irmã caçula, como amo, Pai Nosso”.
Clara –
Devia ser o piano de mamãe que a
comoveu.
Meg -
Não posso rir, agora, meu bem.
Tenho um peso no estômago que causa ímpetos de gritar.
Clara –
Isso desaparecerá, eu prometo. A
dor é enigma a ser resolvido sempre, todos os dias, e quando podemos estar
junto nessa resolução, mais rapidamente nos livramos dele. Eu prometo que a dor
deixará de existir em breve.
Meg –
E como? Às vezes vem tão forte e
insuportável que peço a morte...
Clara – (confortando-a)
Siiiiiii!
Meg -
Antes, quando você segurava minha mão,
abrandava. E agora, assim que Adônis se foi, vieram transtornar ainda mais meus
dias e, como se não bastasse, as noites. São piores a noite, quando há silêncio
e mais breu. Não sabe o quanto! Diga, como vou sobreviver além da dor?!
Clara –
A da carne é ínfima. A que te
aflige, Meg, é parecida com a minha. Vem de perdas, tão imensas perdas...
Meg –
Não vamos chorar, vamos?
Clara –
Quais lágrimas, querida Meg?
Estamos remanescidas de auto-piedade hoje. Sabemos ainda bordar? Onde pusemos
aqueles enormes bastidores, hen, Meg? Aquele em que bordamos juntas a toalha
branca de tia Lúcia? Consegue avistá-lo daí? Desculpe-me, minha irmã, como sou
horrível. Veja só o que tenho nas mãos: o cachecol de Nair. Ingrata Nair, nos
deixou para ser feliz! Tricotei quando estive nas montanhas, a pedido do Doutor
Galdino, dizia que eu tinha pulmões de rebento e que as montanhas
os renovariam e fortaleceriam. Queria me
ver forte como os touros da feira, louco e estridente Doutor Galdino. O que foi
feito dele?
Meg –
Pare! Por favor... por que
recordar coisas que foram cruéis?
Clara –
Não, não as considero cruéis
necessariamente, não mesmo. São parte de nós.
Meg –
Fico feliz em ter escolhido você
para dedicar o fim da minha vida, Clara.
Clara -
Só não posso suportar que sinta
dores, Meg. Gostaria que voltássemos aos tempos em que a casa estava cheia e
éramos ruidosos como lavradores cantantes. Há tanto eco aqui! Faz-me acreditar
nos fantasmas. Tivemos uma discussão sobre namorados no dia em que Nair
anunciou o noivado com Hugo Francisco.
Mamãe sorria, batendo com a colher no tacho, e a cada batida referia-se ao
homem que nós duas amávamos Alencar, Alencar – tam – Alen – tam – car! Era um
belo sonho!
Meg –
Alencar! Eu não poderia ter tido
esperanças com ele, jamais!
Clara –
Pode me dizer, Meg. Adônis se
tornou o retrato cabal de Alencar. Sempre soubemos: Nair, tia Lúcia, mamãe e
eu... Papai, talvez.
Meg –
Sim. Eu também não quis
esconder-lhes o pai de Adônis, apenas torná-lo esmaecido e inválido na minha
memória.
Clara –
Não a culpo, não! Era necessário,
eu sei! De tal maneira, que nos calamos diante de ti!
Meg –
Tanto tempo e também meu filho
foi embora! Devemos parecer aos outros monstros dos quais é preciso fugir.
Clara –
Há alguém lá fora!
Meg –
Penteie meus cabelos, Clara, depressa!
Clara –
Sim, voltarei para arrumá-la se
for alguma pessoa importante.
Meg –
Não me deixe só por muito tempo
Clara – (saindo)
Volto num segundo! Se for preciso
a substância está no copo, ao lado do livro (fica ainda, observando Meg).
Meg–
Já foi? Essa nuvem detestável na
minha frente... eu quero tornar a ver, meu Bom Pai! (apanha o copo) Faça-me a
gentileza de evaporar, líquido amargo. Não pretendo bebê-lo, ah, não
pretendo...
CLARA SUSPIRA BAIXINHO, COMO SE
TIVESSE PIEDADE E SAI, PASSANDO PELA SALA DE JANTAR E DEPOIS SUMINDO PARA FORA
Cena 2 - ainda
no quarto, Divina e Tia Lúcia são iluminadas ao fundo, ambas sentadas. A
primeira tricota . A segunda está apoiada no espaldar da bengala.
Francis aparece ao fundo, quase invisível.
Meg -
(ensimesmada)
É humano sentir dor, Meg! Você
não sabe se é um castigo merecido, só saberá quando estiver do outro lado, por
isso sofra, suporte cada pulsar dessa maldita agonia. Suporte! (Num grito)
Clara! (Divina pára de tricotar e mantém olhar de cumplicidade com Tia Lúcia)
CLARA ESTÁ VOLTANDO COM UMA CARTA
ABERTA NA MÃO .
Clara -
(empurrando-a para a cama)
Uma carta de Nair, Meg. Ela vem
nos visitar logo . Ouve...
Meg -
Arranque isto de mim...
Clara -
Ssss! (lendo) “Queridas irmãs,
minha alma pede que eu as veja e as possa beijar...” quanta eloquência há em
Nair...
Meg-
Não quero que
ela venha me ver assim. Ficaria melhor se pudesse vir quando eu estivesse com
uma aparência decente.
Clara -
“... que as possa beijar. Uma
saudade tentou-me e decidi percorrer os milhares de quilômetros que nos separam
e ir. Por que, finalmente, não mandam instalar um telefone? Ficam embrenhadas
nesse fim de mundo e não podemos nos comunicar freqüentemente.” (Riem Clara e
Meg) Nair é muito peculiar quando escreve. Que referências articuladas, não é
mesmo, Meg?
Meg -
Somos iguais, Clara . Herdamos
dessa educação que nos impuseram, a delicadeza e a finura britânica de nossos
pais e avós. Como eram perfeitos quando nos passavam a tarefa de experimentar
as boas maneiras em tudo que fazíamos.
Clara -
Também era delicioso quando
resolviam abrutalhar a rotina cansativa de vozes baixas...
Meg -
Aquilo eram brincadeiras! Queriam
nos demonstrar o quão terrível era ser rude.
Clara -
Nunca foram esnobes.
Meg -
Nunca!
Clara -
Ela diz que recebeu um telegrama falando sobre seu mal estar, Meg.
Meg
-
Ah! Por que foram incomodá-la
assim, pobre Nair. Deve estar imaginando que tenho alguma doença horrível. Você
telegrafou?
Clara -
Nem posso imaginar quem... (Silêncio longo)
Divina -
Quando eu era ainda uma
garotinha, aqueles pestinhas do fim da rua, esmagavam besouros com os
dedos... Nunca pude olhar para feridas
abertas de animais sem quase perder os sentidos.
Tia Lúcia -
Quieta, Divina!
Concentre-se...
Divina -
Eu só estava recordando, tia.
Quando vou terminar esse poncho, meu Deus?
Meg -
Continue, Clara ...
Clara - (como
despertando)
São só mais algumas palavras e
finaliza . “abraços antecipados de Nair para a doce Clara ...” Como ela é gentil. (rindo) e, escute: “... e
para a minha querida Melina Gabriela, a quem incompreensivelmente alcunham de
Meg.” (riem ambas) realmente, Nair não pode aceitar que não se diga seus nomes,
Meg.
Meg -
Ela não compreende o quanto me
causa rubor este nome duplo? Meus ouvidos acostumaram-se ao simples e bom Meg.
Apenas. (divertida) Não a deixe colocar
Melina Gabriela em meu epitáfio, Clara, prometa-me.
Clara - (abraça-a,
de repente)
Não, somente Meg... Meg...
(Recompondo-se) você borrifou aquela colônia no pescoço?
Meg -
Foi após o banho de ontem, ainda
exala?
Clara -
Tão suavemente. Lembra-me as
brisas das montanhas. (Tempo) beba seu medicamento . (Meg recusa) é preciso,
Meg. Por favor!
MEG ACEITA ATÔNITA O COPO . CAI A
LUZ .
Cena 3 -
Divina , Tia Lúcia e Francis
Divina -
Sempre quando chego na mudança
dos pontos o novelo embaraça, Tia Lúcia .
Tia Lúcia
E o que tem isso? Não posso me
preocupar com novelos e com suas falhas de má tricotadeira, Divina . Devo beber
uma xícara de chá.
Divina -
Deve, sim!
Tia Lúcia
-
E então?
Divina -
Então?
Tia Lúcia
-
Não me prepara o chá?
Divina -
Tenho as mãos atadas com lãs e
novelos e agulhas, Tia Lúcia ... Como espera a senhora que eu vá até a cozinha
lhe preparar chás?
Tia Lúcia
-
Má criada!
Divina -
Devo ouvir, devo ouvir essa
acusação?! A boa Divina, devotada, servil e amorosa, após anos e anos de
cuidados com a velha senhora...
Tia Lúcia
-
Oh, está bem! Nada de chá, nem de
lamúrias também. (Tempo) Peste!
Francis -
Tia, tia Lúcia: Não me evite a senhora também, como se eu
fosse uma anomalia. Meu coração está doente. Pulsa rapidamente, como se
estivesse pronto a levar um susto... ou
coisa assim. Minhas irmãs estão distantes. Se tivesse feito-lhes algum mal, não me
esqueceria... a senhora do mesmo modo
não me responde, tia. (olhando para longe) Que dia comprido!
Divina -
Pelo odor de petúnias aí vem a
irmã feliz e casada...
Tia Lúcia
-
Bem capaz! Tu tens um faro de
bicho ...
Divina -
Não disse?
Cena 4 - na
sala, depois no quarto, utilizando os dois ambientes . Nair entra com malas .
Em seguida Clara, com mais malas . Tia Lúcia e Divina caminham entre as cenas,
sem serem vistas .
Clara -
Não queríamos preocupá-la!
Nair -
O que espera que eu pense sobre
isso?: recebo um telegrama de Divina, repito Divina, que minha Melina Gabriela
está doente... Estonteante, concorda? Não obstante, deparo-me com um quadro
terrível com minhas irmãs envolvidas, e, se não fosse um telegrama... Crê´n
Deus Pai! eu, em tempo nenhum, estaria ciente dos fatos. Faça-me o favor,
Clara, custava me notificar? Onde está minha querida Melina Gabriela?
Clara -
Meg, chame-a por Meg, Nair. Sabe
como ela odeia os dois nomes.
Nair -
Se os tem porquê não
pronunciá-los? No quarto? (Estaca) o que
tem ela? Não está transfigurada, está?
Clara -
Tem dores... Suas vísceras...
Deve imaginar. Apenas pálida e perdeu a visão, coitada! O farmacêutico diz que
o diabetes...
Nair -
Como puderam me esconder tudo?
Eu, no meu distante mundo, crendo que são felizes como sou e... isto! Falta-me
coragem para entrar.
Clara -
Ficará contente em ver você .
Nair -
Não é contagioso, é? (tempo) me
dê água . Preciso de um tempo antes de vê-la .
(Senta-se)
Clara -(servindo-a)
Hugo não veio com você?
Nair -
Hugo? Não . Não pode,
simplesmente há coisas a serem resolvidas nos negócios. Inadiáveis. Ele quis
vir, mas eu o impedi dizendo: Agora precisamos de você aqui, querido, não
sabemos se teremos que dispor de algum dinheiro para minhas irmãs.
Clara -
Estamos bem, não se preocupe!
Nair -
Bem? O que isso significa?
Clara -
Temos nossas economias e... tia
Lúcia...
Nair
E ela? (olham ao redor)
Clara
Na fazenda, com Divina, acho...
Bem, ela nos encarregou de continuar recebendo os alugueres das chácaras até
que se possa fazer a divisão.
Nair -
Sim, eu me lembro desse acordo
entre nós. (bebe todo o conteúdo do copo) como se demora para chegar neste fim
de mundo! Nem me lembrava mais direito ... Desci
no aeroporto da capital, subi num
ônibus até aquela pequena estação no lado oeste, consegui um táxi até a última
cidade há duzentos quilômetros daqui e, o resto do trajeto percorri de
charretes.
Clara -
Imagino como está exausta!
Nair -
Imagine como estou exausta!
Divina -
Realmente, Nair teve muito cuidado... sempre tão jovem e
intensa... e, claro, muitíssimo bela!
Tia Lúcia
-
Que impertinência, Divina!
Felicidade torna-nos belos, todavia!
Divina -
As almas deviam deixar as
rabugices para trás quando deixam os corpos.
Tia Lúcia
-
Divina! A hierarquia prevalece
tanto lá como cá!
Divina -
Tia Lúcia, a senhora não tem
certeza dessas palavras. Tem?
Tia Lúcia
-
Ora, se tenho! Você sempre foi
uma pretinha intrometida! Uma agregada do meu cunhado . O erro deles foi
tratá-la como gente da casa, eu avisei, estão criando um Judas aqui! (outro
tom) Não devíamos ter ido para a fazenda naquele dia fatídico. (outro tom) Um
Judas!
Divina -
Deve ser por essa sua injustiça
que nos colocaram juntas depois que elas... Do consumado.
Tia Lúcia -
Quieta! Vá buscar meu chá!
Meg -
Clara! Quem está aí? Venha me
pentear.
Nair -(comovida|)
Jesus! É melhor ir vê-la, Clara .
Prepare-a, diga que estou aqui e se quer me ver.
Clara -
Natural que quer.
Nair -
Que sina a sua, Clara!
Clara -
Não se preocupe. (Vai para o
quarto) Meg, tudo bem?
Meg -
Quem chegou? Nair?
Clara -
Sim. Está resistente em entrar.
Meg -
Pensa que estou horrível, não é?
Estou? (Chama) Venha, Nair... (À Clara) me dê o líquido!
Clara –
Beba!
Nair - (vindo da sala, depois de
respirar profundamente. Ao entrar no quarto tem uma expressão de asco)
Melina Gabri... Meg, querida ...
(toca-lhe) Sinto tanto!
Meg -
Sei que sente!
Nair -
Entretanto, deve-se abrir as
janelas, meninas!
Clara -
Estão emperradas!
Nair -
Ah!
Meg -
Hugo ... ?
Clara -
Negócios importantes, Meg!
Nair -
Está com uma ótima aparência,
Melina !
Meg -
Estou? Não posso me ver, Nair!
Tudo o que peço nas orações, todos os dias, é que eu possa enxergar as minhas
mãos novamente.
Nair -
Seu estado é passageiro, Me...
Meg. Em pouco estará caminhando e colhendo flores como sempre gostou de fazer.
Anime-se, meu amor, Clara e eu dedicaremos nossa saúde em seu favor. Deixarei
Clara descansar dos afazeres uns dias e tomarei eu mesma conta de tudo . Como nos
velhos tempos. Repouse. Tomarei um banho e mais tarde falaremos. Ah! Trouxe-lhe
um corte de cetim dourado. Com suas
mãos de fadas, seguramente
inventará um magnífico vestido (As três riem) Inventar não é mesmo o termo
correto para um vestido . Vamos, Clara, ajude-me com as malas ... (sai do
quarto e prostra-se na cadeira da sala . Clara vem em seguida)
Nair -
Clara, Clara, Clara ... Ela está
tão magra! Grita quando vêem as dores?
Clara -
É corajosa!
Nair -
Que suplício! Vê-la acabar
assim... Uma mulher como ela! (De repente) e o filho?
Clara -
Adônis! Adônis não se acostumava
com o silêncio, quebrado apenas por mugidos aqui e ali do gado, pios de corujas
à noite...
Nair -
Como eu! (mexendo em papéis sobre
a mesa) Convite ?
Clara -
Nada especial! Senhoras da igreja
que deram um chá para as obras da capela . Já faz bastante tempo. Não fomos!
Mas guardei o convite. Não é delicado?
APAGA-SE A
LUZ. Cena 5 -
DIVINA ,TIA LÚCIA e FRANCIS
Tia Lúcia –
Providencie a venda de tudo. Como
me dói voltar aqui, Divina!
Divina –
Até mesmo a mesa antiga da
cozinha?! A senhora sempre disse que da mesa não se desfazia nem por decreto...
Tia Lúcia –
Esqueça. Venda tudo. Pelo preço
que conseguir. E o que não conseguir vender, doe. Até mesmo para a sua igreja
duvidosa.
Divina –
A senhora quem sabe. (apanhando
um porta retrato) Ai, tia, que pena! O
porta retrato inglês todinho de prata... a única fotografia de Francis.
Foi como a conheci: por meio dessa foto. Toda de branco, como uma noiva!
Tia Lúcia –
Noiva!!!
Divina – (apanhando
o convite)
Antes tivessem ido. Caridade é
uma das poucas maneiras de se aproximar de Deus.
Tia Lúcia
-
Bobagem, cara Divina!
Principalmente quando os benefícios vão abençoar as mãos de sacerdotes
hipócritas. Como os que temos na vila .
Divina -
Cada vez mais me convenço que
estou ao seu lado para salvá-la do pecado .
Tia Lúcia -
Tu é que sobrevoas a mente por
aí, com tamanha benignidade que causa arrepios a mim. (olha para cima) é
possível tão imensa ingenuidade e credibilidade? O mal é deixar a vida ainda
jovem, antes que toda a verdade seja revelada. Existir é uma decepção
ininterrupta, Divina!
Divina -
Continuo me perguntando: em que parte de sua biografia
vieram os urubus e defecaram em sua cabeça?
Tia Lúcia
-
Bem, não a compreendo e nem sei o
que quis dizer exatamente com essas falas conturbadas. E depois, não me lembro
de nenhum urubu. Tenho sede, negrinha, vá atrás de meu chá.
Divina -
Que chá? Me deixe em paz.
Tia Lúcia-
Vê? Aonde ocultou a infinita
bondade? Eu sei como são as pessoas: vivas ou mortas sempre vis, vulgares e sem
nada de uma boa educação inglesa . Um chá é sempre um ritual marcado pela
elegância, pelo propósito da calma rítmica que traz ao coração e,
principalmente pelo tempo que ele leva para esfriar totalmente; tempo em que o
pensamento conta toda a história .
Divina -
Doidices! Chá nada mais é que uma
água suja e sem gosto definido! Como estou cansada, como estou cansada! (Para o
alto) Deus, ou sei lá quem é o dono das linhas tortas, me livra desse peso
morto . (para a Tia Lúcia) Eu não nasci para carregar a avaria de outros. A
senhora é tão perdida...
Tia Lúcia
-(tempo)
Não! Acho que não sou, não! Não,
em absoluto . Eu não estou perdida . E agora me diga, negrinha: sabes que não
nos é permitido efetuar essa espécie de ações incomuns, não sabes?
Divina -
Do que está falando?
Tia Lúcia
–
Queres causar uma tormenta nas pobres mulheres? Como
se pode comunicar entre os dois lados?
Divina -
Se for sobre como sabermos o que
se passa com elas - foi uma ordem
superior.
Tia Lúcia
– (irônica)
Ordem? Artimanhas e feitiçaria,
isso sim. (curiosa) Por que não me falastes sobre a ordem?
Divina -
Desde quando lhe devo submissão?
Meg - (num grito
horrível, no escuro)
Clara!
Tia Lúcia
- (sem assustar-se, naturalmente)
Tivemos uma família bastante
infeliz aqui. Meg, por exemplo, devia ter sido hospitalizada, é sempre um
martírio tratar de doentes em casa.
Divina –
Feitiçaria ou não, dona tia Lúcia, quando se dá
o que foi cometido nesta casa, continuamos assim: acreditando que tudo
continua. Até que se prove o contrário.
Se não tivéssemos ido para a
fazenda nenhum incidente teria acontecido. Se você não tivesse mandado o
telegrama para Nair.... se Adônis não estivesse numa escola tão longe... se Meg
fosse para o hospital... se Clara... se, se, se... ai, meu Deus! Como podem
achar que tudo está bem?
Divina -
Ah! O bendito nó, outra vez!
Nunca que acabarei o poncho...
Tia Lúcia
-
Me responda. Pare de se ocupar
com coisas inúteis, negrinha!
Divina -
Inútil seria a sua bengala se
aceitasse que não precisa mais dela. Quanto ao poncho, minha senhora, é uma
encomenda suprema .
Tia Lúcia
-
Ainda preciso da bengala, e mesmo
que não precisasse, considero um artigo de elegância insuperável. Hum!
Encomenda...
Francis -
Meu coração está doente. Pulsa
rapidamente, como se estivesse pronto a levar um susto... Ou coisa assim. Não me lembro de hoje pela manhã, apenas
desse sol no meu rosto, há horas... Vocês
passavam por mim ainda a pouco, eu tentava tocá-las, mas suas peles desviavam-se
de meus dedos... Além desse temor no coração, tenho uma fisgada aqui no
pescoço. O que foi que eu fiz? Se papai estivesse aqui agora, eu diria a ele
como estão me tratando, papai lhes daria o castigo merecido, tenho certeza.
Tenho certeza. O sol não se põe, é um dia muito longo este. Não alcanço mais
que quatro passos, vou e volto, vou e volto. Lá longe tem uma mão estendida,
parece que me chama para perto dela, mas não consigo alcançar... (de repente com enorme horror)
Meu Pai do céu, como estão diferentes todas vocês! Olhem-se no espelho, envelheceram um bocado
desde o café da manhã. Quem é essa mulher ao seu lado, tia? Alguma criada, com
certeza. (distante) Eu sei!
Não me perdoam por ter amado do jeito que amei, eu sei. No entanto,
sucessivamente confiei nos homens, me convenciam que eu era bela, a mulher de
suas vidas... Prometeram-me tantas
felicidades e, quando estava certa de que seria o último, me deixavam. Jesus!
Tenho visto nos olhos de papai uma
imensa mágoa, mas seus lábios me sorriem! Será que não sou uma boa filha, assim
como não sei ser uma boa mulher? (Já não vê mais ninguém) Pra
onde foram? Tia Lúcia! Essa luz me cega... Que dor, que dor... Não há sombra. O
que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? (desaparece)
Cena 6 - OUVE-SE
UMA MÚSICA . LUZ EM NAIR, NA SALA,
SAINDO DE PERTO DE UM APARELHO DE SOM, ONDE COLOCOU A MÚSICA QUE OUVIMOS .
CLARA ENTRA, ASSUSTADA E PÁLIDA . MEG SENTOU-SE NA CAMA .
Clara -
O que é isso?
Nair -
O que?
Clara -
Música?
Nair -
Ah, isso? Trouxe-lhes de
presente... Colocam-se esses pequenos discos, que chamamos de Disc
Laser´s...
Clara -
Tire isso... Meg não suporta
música. Eu não suporto música.
Nair - (pára a
música)
O que está me dizendo, Clara,
vocês amavam o piano de... Onde está o piano?
Meg - (que se
levantou, atordoada chega à sala)
Comemos o piano, Nair. Comemos!
Clara - (corre para
apoiar Meg)
Meg, não devia ficar de pé!
(senta-a na cadeira)
Nair - (atônita)
O que está acontecendo aqui?
Meg -
Foi o que ouviu, Nair! Vendemos o
piano e também os móveis que vieram com nossos avós... Não tínhamos como nos
manter. Os remédios são caros. A comida é cara.
Clara -
Meg!
Nair -
Mas... E a renda?...
Clara -
Os inquilinos estão passando por
dificuldades, como todos, não têm como
pagar o arrendamento. Quando Divina estava aqui, prestava alguns serviços,
plantava nos fundos da casa, (crescendo para o choro) ordenhava uma
ou duas cabras que tínhamos, tratava de galinhas e nos dava ovos, lutava pela
nossa sobrevivência porque era agradecida ao nosso pai que a criou como filha.
Quando Divina se foi, cadê experiência para sustentar nossos hábitos nobres, de
moças bem educadas? Perdemos o contato com o mundo, os animais ficaram doentes
e um a um inutilizaram-se, não sabíamos como tratá-los e nem que era preciso
regar a horta . Nos acostumamos a ter
tudo o que precisávamos... E tudo o que
precisávamos era ir vivendo...
Sem nenhuma esperança... Sem
nenhuma crença... Sem nenhum amor... Foram todos embora e nos deixaram sem pés,
sem abraço, minha irmã, sem colo, sem filhos, sem música!
Nair - (depois de
um tempo)
Estão loucas se julgam haver vida
melhor que esta!
Meg - (num
suspiro)
Ai! Então, você não é feliz?!
Nair -
Feliz? Ham! Sou capaz de dançar
por horas a fio, sem descobrir bolhas
nos pés.
Isso é felicidade? Posso me olhar
o dia todo ao espelho, e retocar meus cílios e batom, consecutivamente. Isso é
felicidade? E, também, utilizo cartões de crédito, conta bancária, tenho um
motorista que dirige meu carro quando vou a passeio a algum lugar. Felicidade?
Ah, sim, meus dois filhos: a mais velha mora na França e
mantêm contato duas vezes por
ano: um no aniversário de Hugo, para que Hugo não esqueça que ela precisa do
dinheiro que ele deposita fielmente todo mês e a outra ligação fica para o
Natal... Provavelmente porque há neve e sinos para lembrá-la que eu existo . O
outro filho, Hugo Francisco como o pai, começou a freqüentar boates, bares, e
hoje não sei o que freqüenta, pois pouco dá o ar de sua presença. Tão presente
quanto esta parede vazia. Isso é
felicidade?
Meg -
Isso é possível?
Nair -
É.
Clara -
Achávamos...
Nair -
Achavam?
Clara -
Imaginei que tinha tanto prazer
em viver que...
Meg -
Clara, meu bem!
Nair -
E o que me dizem do homem com
quem me casei? Arranjou um jeito de estabelecer vínculos com uma bela jovem,
deu-lhe filhos, casa, carros... Eu fingia que não via, que não era comigo...
Fiz que fiz, até que aos poucos eu me tornei a outra, o recebendo vez em
quando em casa para uma ligeira recordação de nossas trepadas.
Meg e Clara
-
Deus!
Nair -
Valorizar! Palavras, gestos,
decência ... Eis o que importa! Justas causas para justos propósitos.
Metemo-nos numa enrascada, filhas! Fomos pisoteadas pelo destino . Sempre que
houver uma chance, pequena que seja, caçoarei do mundo!
Meg -
Meu Deus!
Nair -
Reaja, Meg, não fique entregue
aos caprichos de Deus. Ele a fez para ser eterna . Tenho vontade de dizer uma
palavra bem suja .
Nair -
Sejamos ridículas e tudo ficará
mais fácil. Quanto ao dinheiro, não se preocupem, de verdade ... Juntei uma
quantia considerável estes anos todos.
Clara -
Não quer se deitar, Meg?
Meg -
Estou me sentindo melhor. Posso
agüentar um pouco mais.
Clara - (indo pegar
um pequeno baú)
Veja, Nair, ainda temos estas
jóias...
Nair -(espalhando
as jóias na mesa)
São as jóias que Francis ganhava
dos noivos antes que eles partissem?
Meg -
Não fale desse jeito de Francis,
pobrezinha! Nunca teve sorte com os homens!
Nair -
Qual de nós teve? Ao menos ela
teve coragem de se enforcar e parar de sofrer.
Nair -
Francis teve a hombridade de
interromper a selvajaria que há entre os seres vivos.
Clara - (mostrando
um anel)
Francis recebeu este de Pedro!
Nair -
É falso! A pulseira também.
Olhem, um dia eu até poderia ter acreditado que essas lascas de vidro fossem
brilhantes. Um verdadeiro tesouro falso. Como os homens que as ofereceram.
Tia Lúcia
-
Francis, como era linda... Por
que não tenho notícias dela? Que mulher era em vida e qual permaneceu depois
dela?
Divina -
Segundo meus contatos superiores
ainda está como no dia de sua morte, está em trevas tão profundas, que nem
mesmo as mais puras orações arrancariam Francis de lá.
Clara -
Com o que, estivemos guardando
inutilidades em casa?
Meg -
Orgulho-me de ter algo do passado
que contenha as energias de nossa irmã, Clara, falsas ou não, pertenceram ao
sofrimento dela e é isso que permanece.
Nair -
Quanto pode se alegrar com a
hipocrisia, Melina Gabriela? (tempo) recolocarei a música e dançaremos... (O
aparelho não está mais lá) que fizeram com o instrumento, onde ouviremos os
discos?
Clara -
Pare de sonhar, Nair!
Divina -
Tia Lúcia? Teremos um pouco de
música?
Tia Lúcia
-
Hoje, não! Nada deve afetar os
pensamentos. Quaisquer melodias influenciariam o andamento dos raciocínios.
Deixemos a casa apenas com os sons das palavras.
Divina -
Finalmente, devo concordar.
Clara - (indo ao
quarto buscar o copo de Meg)
Seja como for Meg tem que tomar a
substância de quatro em quatro horas.
Meg -
Querem que eu volte para o
quarto?
Nair -
Fique, aproveite esse tempo longe
da cama, querida .
Meg -
Mas, Nair, onde jogarei o liquido
sentada aqui?
Nair -
Como?
Meg - (depressa)
Tenho certeza que Clara está me
envenenando .
Nair -
Meg... (Clara volta) o que está
dando para ela, Clara? Clara
-
Beba, Meg, antes que venha a
crise.
Meg - (fica com o
copo parado no ar)
Me sinto bem, Clara .
Nair -
Não quero que ela beba isto se
não quiser. Melina Gabriela tem o direito de decidir se quer ou não ser
medicada com a substância .
Clara - (encarando
Nair com uma expressão horrível)
Chega no fim e quer mudar o rumo
natural de nossas vidas?
Meg -
Eu bebo, não se indisponham por
minha causa .
Nair -
Acredita em liberdade, Clara?
Pois estou de posse do mais nobre sentimento, alma sem culpas.
Clara - (arranca o
copo das mãos de Meg)
Basta! Se quer prolongar seu
sofrimento faça tudo sozinha .
Nair -
Por que quer matá-la?
Clara -
Seria um alivio para ela e para
mim, também. Não imagina o quanto me faz infeliz não mitigar as dores dela .
Meg -
Eu sei, Clara, eu sei. Sou grata,
sinceramente!
Clara -
Não quis abandonar a obrigação de
conservá-la viva, mas parece-me injusto adiar o que é fato ...
Meg -
Embora eu compreenda, somente
Deus tem esse poder, Clara . Por isso nunca bebi um só trago de seu veneno, meu
bem. Esvaziei cada gota dele no meio das pernas, para que você o limpasse junto
com as minhas fezes e urina .
Clara -(num longo
suspiro)
Elementar...
Nair - (agitada,
percorrendo os ambientes)
Ansiava por um retorno às
origens, aquelas que considerava exaustivas e mentirosas, mas que me fizeram
falta . Ledo engano . São horríveis. Esta casa tem o aspecto da doença, a cor
da angustia e o fedor de carne morta .
Tia Lúcia
-
Divina, estou com frio!
Clara -
Havia bondade na minha intenção.
Nair -
Ham! Faça-me crer nessa bondade e
me renderei aos caprichos da vida. Do contrário, cale-se e morra, Clara . Uma
boa vida é a que não deixa indícios.
Clara -
Por que razão esse hediondo Deus
criou as mulheres? Ele as odeia tanto
assim?
Meg -
Se não somos felizes ao menos não
vamos reagir dessa maneira. De que adianta praguejar, minhas irmãs?
Divina - (num
presságio)
Precisamos de um alento, Tia, deixe soar alguma canção
de amor.
Tia Lúcia
-
Não, agora consigo senti-las
proximamente... nenhuma música, por favor, Divina. Não me faças segredo de
nada: diga-me o que sentes, quero entender se são conscientes; se conseguimos
apenas evoluir com o sacrifício, com o sofrimento, elas são leais ou desleais com a dor?
Divina -
O padecimento é que é desleal
para os que procuraram a alegria.
Tia Lúcia
-
De onde surgem essas falas,
negrinha? Dizem esses disparates lá na sua igreja?
Divina -
Isso é o que sinto. Minha crença
nada tem haver.
Tia Lúcia
-
Ainda vais padecer por abster-te
da verdadeira fé e procurar nas religiões marginais, como a tua, um motivo para
os mandamentos Dele.
Divina -
Eu O encontro em
qualquer lugar, tia Lúcia. E tenho plena certeza da minha crença, ao contrário
da senhora que não sabe o que quer. Estou aqui, disposta a esclarecer todas as
suas dúvidas, na medida do possível, é claro, mas a senhora não! Uma hora
acredita em mim, noutra me destrata e ainda tem a impureza de criticar a minha
religião...
Tia Lúcia
-
Quieta, Divina! Estou procurando
escutar!
Divina –
(perplexa)
Escutar?
Nair - (abrindo
uma mal sobre a mesa, rude)
Trouxe mais presentes! Este lenço
e esta linda toalha de toucador trouxe para a nossa querida Clara. Ah, e também
esta colônia francesa! Não é nova, mas é que minha alergia não se deu bem com
ela. Uma caixinha de costura feita a mão para a doce Meg, e dentro os
acessórios. O tecido acetinado para o vestido. Aqui está, Clara, o pequeno
enxoval que estava bordando para a minha filhinha e, desde sempre inútil para
ela. Você o usará melhor. Prendedores, linhas, agulhas, esponja para pó facial,
cosméticos, hei! As pílulas para enxaqueca! Duas ou três caixinhas de chá
indiano e... oh, Melina Gabriela, veja o
que lhe trouxe: uma mortalha - na sua cor predileta.
Clara -
(arranca-lhe a mortalha das mãos)
Meg não enxerga, víbora!
Meg -
Clara ... Eu posso ver através
das lembranças. Não se zangue! Agora ou depois a mortalha me será útil.
Clara - (prostra-se
no colo de Meg)
Ai, Meg, me perdoa, me perdoa ... Não sou uma assassina!
Meg -
Meu bem...
Nair -
Providenciarei um chá. Jasmim?
Clara - (depois de
um tempo)
Jasmim nos alegrará!
Meg -
Tia Lúcia adorava chá de Jasmim!
Também beberei uma chávena dele.
AS TRÊS
SORRIEM. DEPOIS DÃO PEQUENAS RISADAS, ENTRE LÁGRIMAS. A LUZ PERMANECE EM DIVINA E TIA LÚCIA . Cena 7 - NO QUARTO
Tia Lúcia -
Elas ainda se lembram do meu
paladar requintado!
Divina -
A senhora conseguiu mesmo
ouvir?...
Tia Lúcia -
Mesmo depois de tantos amargores, lembram-se
de que adoro chá de Jasmim.
Divina -
Vê? Nem tudo está perdido .
Tia Lúcia
-
Perdido? Não, Divina, apenas tu
se continuares indo aos cultos clandestinos.
Divina -
Se não fossem eles a senhora não
saberia como elas estão!
Tia Lúcia
-
Vendo por este lado ...
Divina -
Sempre estou certa!
Tia Lúcia
- (numa risada rouca e fraca)
Sabe-se lá porque a mantenho
junto a mim...
Divina -
Entendo uma coisa: é o mesmo
sentimento tanto lá quanto cá. Mortos ainda vivemos, vivos também estamos
mortos. A linha divisória está para toda a gente assim como o pensamento está
para a busca de todas as respostas.
Tia Lúcia
-
Quando, afinal, vais me servir o
chá, negrinha?
Divina -
Acho que não tenho escolha, não
é? Ou termino o poncho ou lhe sirvo chá. Que bela rotina tenho eu!
Tia Lúcia
-
Se temos que ficar aqui,
esperando algo, que seja como seres humanos normais. E depois, minha negrinha
linda, uma gota a cada duas horas prolongará a resistência de nosso sangue.
Divina -
A senhora tem cada uma!
Cena 8 -
NA SALA . NAIR SERVINDO O CHÁ . ESTÂO SENTADAS AO
REDOR DA MESA, REPLETA DAS BUGIGANGAS QUE ALI FORAM DEPOSITADAS DURANTE AS
CENAS .
Nair - (propondo
um brinde)
Ao futuro de nossas vidas!
Clara -
Ao passado!
Meg -
Ao presente, enquanto o podemos
dominar...
Nair -
Sinto saudades de Francis.
Meg -
Também de mamãe e papai!
Clara -
Éramos amadas! Se algo ficou sem
explicação foi por merecimento, concordam?
Nair -
Acredito, que depois deste brinde
não haverá necessidade de recordarmos... Sinto um arrepio como se estivessem
nos espionando todo o tempo.
Meg -
Se puderem dizer a meu filho que
eu amei, digam!
Nair -
Creio que não teremos oportunidade
de dizer-lhe, Melina Gabriela...
Meg -
Me chame de Meg, sim?
Clara - (sorri)
Meg nunca concordou com os dois
nomes juntos, Nair! (de repente, distante) Estive pensando, Meg... Nair... Se
por um descuido do acaso eu tivesse tido uma oportunidade brilhante de ser
feliz, como me veriam?
Meg –
Oh, que pergunta, Clara! Não sei.
Nesse instante não me valeria saber, pouco vejo, você sabe. Ahn! Muito provável
que eu a observasse um pouco mais, certamente haveria uma luz terrível saindo
de seus olhos. Mas, se é assim, assim fica, meu bem. Meu coração está cansado!
Clara -
Gostaria que houvesse música, que
fosse a última vez, mas que houvesse!
Nair -
Os anjos estão dormindo!
Espere...
Divina - (entrando
com uma carta na mão)
Tia Lúcia, carta de Adônis ...
Tia Lúcia
- (vindo de dentro)
Oh, leia, Divina, depressa ...
Divina -
Está em Londres! Como foi parar
em Londres o nosso pequeno Adônis?
Tia Lúcia -
Leia, Divina, fico irritada com
você com razão...
Divina -
“querida Tia Lúcia e minha amada
Divina, espero que estejam bem. Estou em Londres, para onde vim tentando
resgatar um pouco de minhas origens. Não sei se voltarei um dia, me é difícil
esquecer tudo o que nos aconteceu aí. Às vezes o remorso de ter partido, me
comove infinitamente. Mas nada pode barrar o destino ou
a fatalidade. Quero acreditar que
os amigos aí da vila ajudaram-nas a superar a tragédia de nossa casa. Eu as
amo, para sempre. Que meu coração chegue até vocês através destas poucas
palavras...” Não entendo estas palavras, tia...
Tia Lúcia
- (tomando-lhe a carta e lendo)
“God save the suicides! Adônis.” (tempo) Ele também não esquece, pobre criança .
Divina -
Um dia estaremos todos juntos,
novamente. Eu sei, eu acredito nisso .
Tia Lúcia -
Mas quando, Divina? Como é isso?
Estragamos o sonho que Deus tinha: um belo e poético paraíso, onde seus filhos
vivessem eternamente, luminosos e harmoniosos assim como o coração do Criador.
Mas, Ele perdeu a esperança e separou a
carne do espírito, Divina, separou. E, dividiu também, todas as possibilidades
de termos certezas. Tudo éter! Plenitude dos sentidos que nos encaminham para
todos os pontos do universo... Recorrências, todavia. Recorrências. Repetições
que somos obrigadas a praticar para
entendermos todas as falhas cometidas. Não, nós os mortais, não zelamos o
espírito porque nos importa muito mais a vivacidade da carne. Eis-nos detentas do pecado, vilãs
continuístas dos degenerados e, que medo me dá acreditar em ti, negrinha. O que
tu fazes é magia negra? Oh, sim! Quando se há necessidade de crer, as mentes
constroem mecanismos estranhos, fazendo que pobres senhoras, como eu, acreditem
no que criaram. Mas, confesso que me aliviam tuas palavras e a calma com que as
expõe. (Surpresa) Mentiu-me a Igreja a quem confessei meus delírios... Diz-me a
verdade, agora, a alma.
Divina -(vai ao quarto, apanha o poncho
já terminado e cobre os ombros de Tia Lúcia) Deus me inspirou a terminar o
poncho para aquecer seu corpo, tia. Fique feliz, estarei contigo enquanto me for permitido. E
logo, logo, entenderemos tudo. (brincando) Eu, a senhora, a casa, os vivos, os
mortos, o mundo... Quer um chá, bem quente?
Tia Lúcia
-
Quero! Quando fores para a
cozinha, coloque uma música. Quem sabe, lá onde
estejam, possam ouvi-la e, finalmente, encontrarem Deus. (Divina sai)
Francis –
Onde estão? Está ficando escuro e
me sinto só. Como dói meu peito... o que foi que eu fiz pra todos me negarem
desse jeito, meu Deus? Meu Deus?! Preciso de ar... estou sufocada, quero
respirar... o sol foi embora... meu ar foi embora... minha família foi
embora... o que foi que eu fiz? Calem a
boca, eu estou viva, eu estou viva... não quero me arrepender de nada, eu não
fiz nada, eu só estou sonhando, sonhando...(põe a mão no pescoço) um adorno
cintilante rasga o véu da noite, não pode ser estrelas, deve ser uma nave, irá
me reter além de todas as nuvens, vão me tirar à oportunidade de ser feliz mais
uma vez... quero ar, preciso viver... (sua voz fica cada vez mais baixa) ainda
não disse pra mamãe, pro papai, pra tia Lúcia, pras minhas irmãs do meu enorme
amor por eles... Minha voz
desaparecendo, deixa apenas o sussurro de meus lábios. O rosto lavado por
lágrimas grossas, atado ao véu, limite da minha prisão, infinita dor, eterno
anoitecer...
UM SEGUNDO
DEPOIS OUVIMOS A MÚSICA. TIA LÚCIA PARECE COMOVIDA. DIVINA VOLTA COM O CHÁ,
FICA PARADA, COM A XÍCARA NAS MÃOS OLHANDO PARA O CORPO DE TIA LÚCIA. MEG,
CLARA E NAIR OLHAM PARA A LUZ QUE VEM DA
TIA E EXCLAMAM:
As três -
Tia Lúcia!
fim
A LAGARTA CICINHA - infantil - Ademir Esteves
A Lagarta CICINHA – fábula do jardim encantado
Musical infanto-juvenil de Ademir Esteves
Personagens:
Cicinha (Lagarta muito jovem)
PRIMEIRA PARTE
Carcarânio (Carcará velho e doente)
Urubúcula (Urubu adolescente vegetariano, que adora rúcula)
Cleópata (Uma pata que sonha em ser Cleópatra)
Mandacaru (Um cacto que está secando)
Zé Jerico (Jumento retirante)
SEGUNDA PARTE
Margarida (A líder do canteiro de margaridas)
Espantalhões (Espantalho de 4 pernas, 4 braços e 2 cabeças)
Bico Fino (Canário amarelo, muito elegante)
Jardineiro (Homem sábio)
Dona Neura (Mulher do Jardineiro, agitada e impaciente)
Irritinha (Filha mimada do Jardineiro)
Feijó e
Jiló (Irmãos gêmeos da família dos sapos)
Liberdade (Fada dos Jardins – é um personagem que veste um grande manto azul e tem muitos braços e 5 cabeças – cada cabeça representa um dos sentidos)
Primeira Parte
CAATINGA. CARCARÂNIO ESTÁ SOBRE UMA PEDRA AO LADO DO MANDACARU. DETRÁS DO MANDACARU APARECE APENAS A CAUDA DA LAGARTA CICINHA. NA FRENTE DA CAATINGA ESTÃO CLEÓPATA E URUBÚCULA BRINCANDO DE CÉU E INFERNO.
Canção:
URUBÚCULA
Desta distância não se vê o céu
O céu está coberto com nuvem de chuva
A gente sente é o fogo ardendo
No chão queimando o pé do bicho do sertão
TODOS (refrão)
Quanta canção se fez aqui pra terra
Vamos levando a vida como é
De certo um dia choverá bem forte
E o sol não mais nos queimará o pé
CLEÓPATA
Nuvem de chuva só pesa no céu
De lá não cai nenhuma gota, não
Aqui embaixo a gente pula as casas
Da brincadeira céu inferno no sertão
TODOS (refrão)
Oi, mandacaru:
Secou, secou
Da sua flor bebemos toda a água
Mandacaru secou, secou, secou
A gente fica esperando a chuva
Para regar o poço fundo do sertão
(CLEÓPATA E URUBÚCULA CONTINUAM BRINCANDO)
CARCARÂNIO
Olhe que esses meninos têm muita vitalidade, Mandacaru. Brincam o dia inteiro e nem se dão conta que a barriga tá roncando.
MANDACARU
Deixe brincar, Carcarânio, que assim as idéias viram verdade e acabam vivendo uma história diferente todos os dias.
CARCARÂNIO
O que me apoquenta é meu neto. O menino é um urubu muito diverso, pois não é? Onde já viu urubu gostar de rúcula e não de carne? Todo santo dia tem que bater asas até a capital buscar verdura na feira.
MANDACARU
Se chovesse podia assentar uma horta.
CARCARÂNIO
Se chovesse, Mandacaru, você não estaria secando e eu não teria envelhecido tão rápido.
URUBÚCULA
Vovô, diga a ela aonde fomos quando aprendi a voar, diga, ela não acredita.
CARCARÂNIO
Mas digo, venha cá Cleópata, quando o Urubúcula aprendeu a voar, eu o levei até o sul, aonde a seca ainda não chegou.
CLEÓPATA
E lá é tudo bonito mesmo? Cheio de planta e gente?
URUBÚCULA
Mas é. Foi lá que comi rúcula pela primeira vez. Que delicia! Nunca mais eu quis comer carne, não senhora. Por isso mudei meu nome de Urubucarnicinha para Urubúcula.
CLEÓPATA
E conheceram a Cleópatra?
CARCARÂNIO
Vê lá, Cleópata, essa rainha egípcia viveu há séculos atrás.
URUBÚCULA
Não te falei?
CLEÓPATA
Quando nasci encontrei uma foto dessa rainha linda no ninho. Eu sempre quis ser como ela.
MANDACARU
Você pode não ser a Cleópatra, mas é bonita igual que nem.
(OUVE-SE O CHORO DE CICINHA, QUE AOS POUCOS VAI APARECENDO DETRÁS DO MANDACARU)
CLEÓPATA
Olhem, uma minhoca chorona!
URUBÚCULA
Isso não é uma minhoca... (CICINHA CHORA MAIS)
MANDACARU
Oras, mas é uma lagarta...
CARCARÂNIO
Cadê sua mãe, menina?
CICINHA
Não sei. Passei a noite grudada no mandacaru... Minha mãe foi embora e me deixou sozinha.
MANDACARU
As mães das lagartas sempre vão embora.
CLEÓPATA
Não chora, você poderá ser minha serva. Eu sou a rainha Cleópata e você quem é?
CICINHA
Cicinha.
URUBÚCULA
Oi, Cicinha, não fique com tanto medo. Aqui na caatinga somos uma grande família.
CICINHA
Estou com fome!
CARCARÂNIO
Hum, você se acostuma logo com isso.
CLEÓPATA
Eu tenho uns grãos de milho...
MANDACARU
Estou secando, mas ainda tem um pouco de água no meu bolso.
URUBÚCULA
Quer uma folha de rúcula?
CARCARÂNIO
Ou um pedaço de carne crua?
CICINHA
Acho que aceito um pedaço de rúcula. Minha mãe me disse que as larvas devem comer muitas folhas... (experimenta a rúcula) mas essa tem um gosto horrível...
URUBÚCULA
Danou-se! É uma delicia, isso sim! Se não quer sobra mais...
CLEÓPATA
Eu sei, eu sei, nem tudo é gostoso, mas se tá faminta, coma.
MANDACARU
Meninos, ela não está habituada com essas iguarias que ofereceram...
CARCARÂNIO
Assim você não se transforma em borboleta, Cicinha. Precisa encontrar um jardim cheio de flores pra se alimentar.
URUBÚCULA E CLEÓPATA
Jardim!!!
CLEÓPATA
Chiii! Por aqui não tem jardim. Você vai ficar muito magrinha. Como será minha serva se não tiver força pra servir meu jantar???
CICINHA
Jantar? Hum, que fome!
URUBÚCULA
Que mania de grandeza, Pata.
MANDACARU
O que podemos fazer???
CARCARÂNIO
Se é difícil arranjar alimento pra meu neto e pra mim, que dirá pra uma lagarta...
CICINHA
Será que nesse pedaço de mundo só eu tô vivendo assim?
(OS QUATRO VÂO SE REUNINDO PARA DISCUTIR O FUTURO DE CICINHA. CICINHA VEM PARA A FRENTE, DESOLADA E CANTA)
CICINHA
Quando era um ovinho na barriga da mamãe
Eu sonhava com mil flores gotejadas de orvalho
Onde iria morar, onde iria crescer
Num casulo transformar, e depois voar... voar!
Mas nasci em meio à seca, o sol quer me castigar
Como vou sobreviver sem flores pra me guiar?
Acho que o meu destino é subir num galho seco
Esperando uma coruja que venha me buscar
Vou morar na barriga dela, quem sabe até imaginar
Que ainda moro quentinha num ovo, pequenininha
Junto da minha mamãe, me abraçando com carinho
Me alimentando de amor... e de novo, sonhar e voar!
CLEÓPATA
Sabe que eu acho? Acho que você deveria por alegria em sua vida, Cicinha. Tristeza não serve pra nada.
CICINHA
Mas você também sonha.
URUBÚCULA
E como, vive no mundo da lua!
CICINHA
É isso que a faz feliz.
CLEÓPATA
Resolveram todos me aporrinhar, é? E depois, eu não sonho, sou mesmo uma rainha. Até o mandacaru já comprovou.
CARCARÂNIO
Chegamos a uma solução.
CICINHA, CLEÓPATA E URUBÚCULA
Mesmo? Falem... Contem...
MANDACARU
Amanhã, quando o Carcarânio for à cidade buscar verdura na feira, você pega uma carona com ele.
CARCARÂNIO
Eu deixo a Cicinha na barraca das flores... lá terá muito alimento e poderá morar até se transformar em borboleta. Que acham?
CICINHA
Será que não vou me sentir muito sozinha?
URUBÚCULA
De repente encontra uma porção de amigos por lá...
(FALAM TODOS AO MESMO TEMPO NUMA GRANDE ALGAZARRA. A NOITE VEM CHEGANDO).
CANÇÃO:
CHEGOU A NOITE
VENTINHO DA NOITE
ESTRELAS NA NOITE
HORA DE DORMIR
DORMINDO DE NOITE
QUERENDO QUE A NOITE
REFRESQUE A NOITE
PRA GENTE DORMIR
(CHEGA O DIA. URUBÚCULA E CLEÓPATA ESTÃO DORMINDO. MANDACARU TIRA UMA GARRAFINHA DO BOLSO E BEBE UM GOLINHO DE ÁGUA. CICINHA E CARCARÂNIO NÃO ESTÃO EM CENA)
MANDACARU
Minha água está quase no fim. Não chovendo depressa virarei cacto seco.
URUBÚCULA
Bom dia, Mandacaru. Meu avô não voltou da feira?
MANDACARU
Ainda não. Vai ver foi visitar a Cicinha. Já faz alguns dias que ela foi morar na barraca de flores...
CLEÓPATA
Ai, ai, bom dia, senhores! Sonhei com um súdito: ele atravessava a nado o rio Nilo pra me entregar uma coroa de rubis...
CARCARÂNIO
Estou esbaforido... Não consigo mais voar por tantos quilômetros...
MANDACARU
Meu velho Carcarânio demorou muito. Estava preocupado.
URUBÚCULA
E Cicinha como está, vovô?
CLEÓPATA
Já virou borboleta?
CARCARÂNIO
Não sei. Morava num vaso de azaléia. Mas me disseram que o vaso foi vendido para uma araponga.
MANDACARU
Que sina tem essa lagarta, hen? Não tem sossego...
CARCARÂNIO
E o pior não é isso... o pior é que a araponga comprou o vaso pra dar de presente de aniversário para um calango que mora aqui perto. Cicinha voltou pra caatinga...
OS OUTROS
Ah, não!
CLEÓPATA
Vamos procurar a Cicinha, Urubúcula?
URUBÚCULA
Claro, deve estar precisando de nós... (saem)
MANDACARU
Crianças! Bem, bem, nós também tivemos nossos dias de arteiros, não foi mesmo, Carcarânio? Me lembro de você engasgado com uma pedra...
CARCARÂNIO
E foi... Era uma pedra deste tamanho, ou um pouco maiorzinha, ´tava no pedaço de carne que eu tinha encontrado no pasto, o pasto que ficava daquele lado, que hoje não existe mais por que a seca matou...
MANDACARU
E eu espalmando suas costas...
CARCARÂNIO
‘Tava desesperado, sufocando...
MANDACARU
Então eu arranquei um espinho e te cutuquei com ele... Destes um berro e a pedra voou longe... (Riem)
CARCARÂNIO
Bons dias aqueles. Comida pouca, mas tinha. A pedra parada aqui na goela é outra, agora... Hoje tenho que criar dentes de onça pra arrancar fiapos de ossos secos...
(ENTRA ZÉ JERICO, CANTANDO)
ZÉ
Devagar, devagar, Lá lá lá lá lá lá
Não me apresso, se me irrito
Eu posso empacar Sempre em frente
Devagar. I i i i i ih ó!
Retirando do deserto, Pro sul eu vou me mudar...
MANDACARU
Tá se mudando, Zé Jerico?
ZÉ
Me vou... aposentei e vou mudar lá pra cidade grande. Sou um retirante, como dizem.
CARCARÂNIO
Até que você não é tão burro... Trabalhou a vida toda na roça e agora passarà a velhice na cidade.
ZÉ
E não? Meu primo me arranjou moradia num jardim muito do florido, cercado de água fresca e capim gordura. Vou me fartar...
MANDACARU
Nesse passo não chega antes do ano que vem... (riem)
ZÉ
Chego logo, sim. Vou de caminhão... Arranjei carona...
CARCARÂNIO
Que beleza! Ôxe! Zé Jerico, você poderia levar Cicinha com você...
ZÉ
Mas quem é Cicinha?
MANDACARU
Idéia muito boa, Carcarânio... nós vamos te contar a história da lagarta Cicinha...
CARCARÂNIO
Um belo dia se perdeu da mãe... Mas como uma lagarta viveria numa seca como essa?...
ZÉ
Conte-me, home. Tô que não agüento de curiosidade...
MANDACARU
Os meninos foram buscá-la... É bonitinha que só vendo! Chama-se Cicinha...
(MÚSICA. A LUZ VAI CAINDO).
SEGUNDA PARTE
Num foco Zé Jerico fala, durante a troca de cenário.
ZÉ
Do leite se tira a nata, da nata se faz manteiga, a manteiga vai ao bolo, e o bolo chega na festa, coberto de glacê branco, enfeitado com chocolate, coco ralado ou sorvete. Depois dos parabéns, soprada a velinha com pedido do sonhado e em seguida do quem será que o festejado vai casar, ele dá o primeiro pedaço pra alguém que mais amar. E eu que do sertão vim, faço verso com tudo que há, acertado e rimado sai que nem folhetim, com começo, meio e fim. Sei falar em duas línguas, a de vocês e a minha, que é de título: Jeriquês. Pra quem não entende português, traduzo pra meu idioma todas letras de uma vez. Fica assim: hi ó, hi ó... ó, ó! (etc) E para finalizar, digo que me afeiçoei à bichinha chamada Lagarta Cicinha, a quem chegando na cidade, deixei num bonito jardim. To indo pro meu cantinho, de burro velho e feliz, terminarei os meus dias fartando-me de capim, inventando poesia de cordel, olhando pra relva, pras flores, pro mundo arredondado e pro céu. (SAI)
JARDINEIRO REGANDO AS FLORES. ENTRAM DONA NEURA E IRRITINHA.
NEURA
Meu marido, agora quero só ver. Irritinha está esperando a sua flor matinal como em todas as manhãs. Veja, filhinha, seu pai não deixou que eu colhesse a sua flor hoje.
IRRITINHA
Eu quero uma margarida, papai, senão vou abrir o berreiro!
JARDINEIRO
Quantas vezes eu tenho que dizer que elas ficam mais bonitas plantadas, minha filha?
IRRITINHA
A mamãe me acorda todos os dias com uma flor... eu quero aquela, aquela...
JARDINEIRO
A margarida? Nem pensar. Ela é especial, nunca arrancarei a margarida deste canteiro.
NEURA
Seu pai não me deixou pegar nenhuma... Até me deu uma bronca deste tamanho!
IRRITINHA
Você é mau, papai! Prefere seu jardim...
JARDINEIRO
Querida, cuido do jardim para você brincar no meio das cores da natureza.
IRRITINHA
Mas como foi enfeitar o meu cabelo sem flor?
JARDINEIRO
Oras meu docinho, esse rostinho bonito não precisa de mais nada para...
NEURA
Tá vendo, Irritinha? Seu pai dá mais importância a esse monte de planta do que a você...
JARDINEIRO
Não é verdade, Neura, amo minha filha e...
IRRITINHA
É sim, é sim! Como ir pra escola desse jeito? Sabe de uma coisa? Eu vou quebrar todos os meus brinquedos e amanhã quero tudo novinho...
NEURA
Viu em que estado deixa a menina, Jardineiro meu marido? Você é um pai ausente... Vem, filhinha, a mamãe compra uma porção de margaridas pra você na floricultura...
IRRITINHA
Acho bom. Nunca mais vou brincar nesse jardim horroroso... se eu fosse você, mamãe, mudava pro apartamento da vovó. Lá é muito melhor.
JARDINEIRO
Irritinha, eu cuido desse jardim pra você, minha filha!
IRRITINHA (fazendo birra e chorando)
Se fosse pra mim eu podia arrancar essas flores todas e me enfeitar. Eu ia causar um monte de inveja naquelas feiosas da escola. E se gostasse de mim, papai, cimentava tudo e botava um playground só meu aqui. (sai berrando)
JARDINEIRO
Neura, você está mimando demais essa menina!
NEURA
Eu, Jardineiro meu marido? Tenho que fazer alguma coisa, não é? Não tenho culpa se Irritinha tem um pai egoísta...
JARDINEIRO
Neura?!...
NEURA
Passe bem... (sai)
JARDINEIRO
Neura vamos conversar... (sai atrás dela)
MARGARIDA
É de cortar o coração!
ESPANTALHÕES (AS CABEÇAS DIVIDEM AS FALAS)
E não é? O Jardineiro não merece ser tratado assim. Ele não merece.
MARGARIDA
É um homem tão bom.
ESPANTALHÕES
É, mas você poderia dar um jeitinho nessa situação, Margarida! Sabe muito bem o que tem de fazer.
MARGARIDA
Espantalhões, não digam essas coisas em voz alta. Rapazes fico arrepiada...
ESPANTALHÕES (CANTAM)
É verdade, minha querida. Se o jardineiro tivesse
Coragem pra te colher. E desse você de presente
Pra filha dele, Irritinha. Uma família nova ele iria ter
Somente você Margarida. É quem tem esse poder
MARGARIDA
Espantalhões, vocês bem sabem
Que sou a mãe desse jardim
Se eu for parar nas mãos da menina
Ela será toda transformada, sim
Mas se eu salvo a garota de ser chata
Esses canteiros secarão sem mim.
ESPANTALHÕES
É verdade, minha querida. Se o jardineiro tivesse
Coragem pra te colher. E desse você de presente
Para a filha dele, Irritinha, salvaria a menina
Mas o jardim morreria!
OS TRÊS
Jardim sem flor é deserto
Falta de ar pra respirar
É cimento, piso frio, concreto
Terra coberta onde a água não entra
E seca o veio de onde iria retornar
A água límpida pra toda sede saciar
BICO FINO
Buenos dias, amiguitos. Triiiiiiiiii! Uno dia mui belo. Triiiiiiiiiiii legal! Mas: ih!!! Que rostitos tristonhos estes... Alegrastes, alegrastes, su compañero Canário Amarelito acá está... Priiiiiii!
ESPANTALHÕES
Hum, Bico Fino, estamos numa complicação maior que a lua. Maior que o sol! Maior que...
BICO FINO
Se és maior que todo esto, só tiengo a dizer: Triiiiii steza, por quê? Se todo que nos cerca és tão admirável...
MARGARIDA
Admirável pra você que pode voar pra todos os lugares que quiser. Eu não!
ESPANTALHÕES
É mesmo! E tudo por causa da fada Liberdade.
BICO FINO
O que? Una fadita tão buena como ela? Nem parece fadita!
ESPANTALHÕES
Vai ver que não é mesmo. Vai ver que não é!
MARGARIDA
Assim não gosto, na na ni na não! A Fada Liberdade tem uma grande ciência sobre as coisas. Se ela encantou minhas sementes com o atrativo de me fazer mãe do jardim, então ela sabia o que estava arranjando. Portanto, não falem mal dela.
BICO FINO
Mas triiiiiiiiiiiiii que não posso trinar com esta curiosidà: Espantalhones e Margaridita, Bueno seria se me contassem las artimanhas que desconheço... Qual é a buena? Qual é a triiiiiiiiibuena?
ESPANTALHÕES
Qual é a boa? A boa é que se a margarida algum dia for arrancada do pé, toda a natureza ao redor se perderá. Tudo se transformará numa paisagem seca e triste. Mais triste que deserto. Mas em compensação quem arrancá-la se tornará uma pessoa boa para sempre.
MARGARIDA
O Jardineiro ouviu contar esta história quando era menino. E por precaução cuida de mim com muito amor.
BICO FINO
Ah! Então esto és una lenda, una crendice que o tempo firmou...
FEIJÓ E JILÓ (entram coaxando e cantam)
Croá, snoff, berg...
Lenda não é, lenda não é
Os sapos sabem se a margarida for embora
Então: croá, snoff, berg
O tronco vira tora.
A grama seca, a terra racha, minhoca fica dura que nem pedra
Os sapos sabem se a margarida for embora
Então: ber, snoff, croá
A rosa encolhe, o cravo trava, e passarinho que voava nem galho mais terá
Sem ninho, sem sementes, perde asas de voar.
BICO FINO
Triiii... estoy contento... pero non mucho, agora... Se a história for mesmo verdad, corrrrrrrrrrremos um grande periguito.
FEIJÓ
Ué, achei que você era canário... não periquito!
JILÓ
Para de ser tonto, Feijó? Bico Fino disse perigo.
FEIJÓ
Ah, então ta, Jiló. É essa mania do Bico em falar tudo no diminutivo, me dá um nó no cérebro... croach!
MARGARIDA
Mas qual perigo pode haver, Bico Fino?
BICO FINO
Yo voy dizer: Espantalhões, fiquem atentos, siempre... alguém, por maldade ou vaidade pode querer arrancar a Margaridita trii bonita no meio da noite...
ESPANTALHÕES
Estamos sempre em guarda, quando uma cabeça dorme a outra vigia. Nada vai acontecer neste jardim que não passe pelos nossos olhos.
BICO FINO
Trrrri Bueno, tri Bueno... me voy a bater asas por aí... adiós, niños, hasta La vista! (sai)
ESPANTALHÕES
Hum, como se não fossemos bons espantalhos de jardim!
MARGARIDA
De certa forma o Bico Fino pode ter razão...
JILÓ
Pode não, ele tem razão... Imagina se alguém colhe a nossa rainha?
FEIJÓ
Imagina se alguém colhe a nossa rainha?
ESPANTALHÕES
Nem passando por nossas cabeças, Jiló.
FEIJÓ
Nem passando pelas cabeças, Jiló.
MARGARIDA
Mas, pensem bem, tudo na vida tem dois lados.
JILÓ
Como dois lados?
FEIJÓ
Dois lados, oras... o de dentro e o de fora...
ESPANTALHÕES
O de frente e o de trás...
JILÓ
O de cima e o de baixo...
MARGARIDA
Sabem, viver necessita de entendimento sobre as coisas... é claro que se eu for embora muitos vão perder: a terra, as plantas, as cores desse jardim tão bem cuidado... Mas em compensação alguém terá recebido o benefício de ser uma pessoa melhor...
JILÓ
Tudo bem! Acontece que de repente uma pessoa que já é boa pode colher você...
FEIJÓ
De repente a pessoa boa pode arrancar você, e aí?
MARGARIDA
Acho pouco provável, Feijó... a fada Liberdade, sabe, a fada dos jardins, é muito esperta... O encanto que ela me colocou só os sábios podem entender.
CICINHA (acordando de trás da pedra)
Bom dia, queridos!
TODOS
Bom dia, Cicinha!
ESPANTALHÕES
Perdeu a hora hoje?
CICINHA
Acho que sim... Fui dormir com a barriguinha bem forradinha, ontem.
MARGARIDA
Falta bem pouco pra você se tornar um casulo, Cicinha. Depois é voar, voar.
JILÓ
Nessa fase tem que comer bastante...
FEIJÓ
Comer muito... né? Croch, falando em comer... Olhe aquela mosquinha bem perto do lago, Jiló!
JILÓ
Onde tem uma... tem várias. Borá lá, Feijó que to com fome de sapo!
TODOS RIEM E OS SAPOS SAEM PULANDO LÁ PROS LADOS DO LAGO.
ESPANTALHÕES
Tudo em paz até o momento.
CICINHA
Minha mãe iria ficar orgulhosa de mim. Sobrevivi viajando no lombo de um jerico.
MARGARIDA
Aquele burro velho tem um coração de ouro!
CICINHA
Coração de Margarida!
ESPANTALHÕES
Ahhhhhhhhhh! Que meigo!
MARGARIDA
Como você é fofa, Cicinha. Os corações das flores são mesmo delicados...
CICINHA
Quando eu for uma borboleta quero ser como vocês. Amiga dos amigos, sempre ajudando uns aos outros. Só recebi coisas boas da vida. Até quando não havia nada pra comer e eu achava que não iria conseguir continuar, encontrei plantas e animais maravilhosos que me deram força, muita força. (canta)
NATUREZA
TEM NO NOME A BELEZA
DE SER MAIS
DE TER COMO CONSEGUIR
CONTINUAR
NATUREZA ESTÁ NO CAMPO
OU NA RUA OU NA CAIS
NO SERRADO, NAS RAIZES OU NO AR
NATUREZA QUE SOU EU
QUE É VOCÊ E É TAMBÉM
A LUZ DO DIA
ILUMINANDO A PAZ!
TODOS (CANTAM)
NATUREZA ESTÁ NO CAMPO
OU NA RUA OU NA CAIS
NO SERRADO, NAS RAIZES OU NO AR
NATUREZA QUE SOU EU
QUE É VOCÊ E É TAMBÉM
A LUZ DO DIA
ILUMINANDO A PAZ!
NATUREZA
TEM NO NOME A BELEZA
DE SER MAIS
DE TER COMO CONSEGUIR
CONTINUAR
(SOM DE GRILOS. ANOITECEU. NO AZUL DA NOITE VEMOS UMA FIGURA COBERTA POR UMA CAPA COM CAPUZ QUE SE APROXIMA DO JARDIM. O SOM DA MÚSICA ANTERIOR TORNOU-SE MAIS ALTA E COM CLIMA DE SUSPENSE. VEMOS UMA MOVIMENTAÇÃO EM CENA, NA PENUMBRA. E DE REPENTE SILÊNCIO. AMANHECE. CICINHA ESTÁ DEITADA SOBRE A PEDRA GRANDE. NÃO HÁ MAIS NADA NO JARDIM. TUDO SECOU. A MARGARIDA DESAPARECEU. APENAS O TRONCO DOS ESPANTALHÕES ESTÁ NO LUGAR DE SEMPRE, SEM VIDA. NADA TEM VIDA. A NÃO SER CICINHA QUE PARECE FRACA E TENTA DESPERTAR. MAS VOLTA A DORMIR SEM FORÇAS)
JARDINEIRO ENTRA ACOMPANHADO DE DONA NEURA
JARDINEIRO
Venha ver, Neura... Veja o que fizeram com o nosso jardim.
NEURA
Ah, que pena! Quem poderia ter feito isso?
JARDINEIRO
Não tenho idéia... Alguém muito mau. Muito mau (triste, tenta esconder o choro de Neura) Tantos anos me dedicando ao jardim... só pensava na alegria de nossa filha crescendo em meio... (se cala)
NEURA (percebendo a tristeza do marido)
NEURA (percebendo a tristeza do marido)
Meu querido Jardineiro...
JARDINEIRO
É como ver um amor morrendo, Neura. Fiz tudo que pude para manter viva a esperança do nosso mundo. Mas eu sou um simples jardineiro... Existem poucos jardineiros que ainda acreditam que a natureza possa ser salva, sabia?
NEURA (ABRAÇA-O)
Venha cá, meu marido... Só agora percebo o que você quis dizer esses anos todos. Eu, você, todas as pessoas e bichos e plantas e água... Tudo é natureza, não é?
CICINHA (NUM SUSSURO)
Alguém... me ajude... não posso me mexer... estou com sede... o sol, o sol é um fogo gigante...
JARDINEIRO
Vamos embora, Neura. Nunca mais quero voltar neste lugar.
NEURA
Espere, marido...
CICINHA
Ninguém está me ouvindo... por favor... me ajudem...
IRRITINHA (ENTRA E FICA OLHANDO O PAI DE LONGE)
NEURA
Ainda podemos salvar alguma coisa? Uma plantinha, uma graminha que seja?
JARDINEIRO
Acha mesmo que eu teria ânimo pra recomeçar? Esta terra, sem a margarida, é terra sem vida. Agora é jogar concreto em cima disso tudo e esquecer que houve um jardim aqui. Como em todos os lugares... Não é sempre assim?
NEURA
Deve haver uma maneira...
JARDINEIRO
Quem arrancou a margarida não tem coração...
IRRITINHA
Pai...
CICINHA
Não enxergo mais nada... pra onde foram os ruídos do jardim? Margarida? Margarida... Aonde você está?
IRRITINHA
Não importa agora quem roubou a sua flor... mamãe e eu vamos ajudá-lo a reconstruir o jardim...
JARDINEIRO
Tá falando seriamente, Irritinha? Você que sempre esperneou, fez birra, quebrou brinquedos porque eu não lhe dava a margarida de presente...
NEURA
É minha filha... você está bem? Cadê os gritos, o choro chato de todas as manhãs?
IRRITINHA
Eu tive um sonho...
MÚSICA INCIDENTAL
IRRITINHA
Sonhei que era noite, estava vestida numa capa enorme e vim arrancar a margarida...
CICINHA DESCEU DA PEDRA, LENTAMENTE, COMO SE AGONIZASSE E PARA NO LUGAR ONDE A MARGARIDA ESTIVERA.
IRRITINHA
No meu sonho, depois de tirar a flor da terra, tudo começou a secar, a fonte não gotejava mais, as arvores murcharam até virarem serragem... Fiquei com medo porque eu comecei a me sentir mal... Achei que fosse desaparecer, também.
NEURA
Isso foi mesmo um sonho?
IRRITINHA
Não sei, mãe. Quando acordei, senti uma vontade muito grande de dizer que... que vocês são o que mais amo nesse mundo todo. Senti amor. Quando abri a mão... ela estava assim... (abre a mão forrada com sementes)
JARDINEIRO
São sementes de margarida...
OS TRÊS SE ABRAÇAM. A MÚSICA SOBE. DEPOIS ELES DEPOSITAM AS SEMENTES SOBRE O CORPO DE CICINHA E COBREM COM UM TECIDO COR DE TERRA.
A FADA LIBERDADE, UM BONECO ENORME, APARECE CANTANDO ATÉ CHEGAR À FRENTE E COBRIR TODA A CENA.
FADA (CANTA)
O OLFATO DA FLOR QUE RENASCE
O TATO DE TOCAR A FLOR
VISÃO PARA VER OUTRA FLOR
BROTANDO DO ENCANTAMENTO
E NO PALADAR SINTO O GOSTO
DE POEMA QUE SE COME
COMO QUEM SE ALIMENTA DE AMOR
LIBERDADE, LIBERDADE
ABRE AS ASAS SOBRE NÓS
FADA
Nem tudo nessa vida é alegria, a gente sabe disso, não é? A lagarta Cicinha não conseguiu se transformar na borboleta que queria, mesmo fazendo um longo percurso vindo no lombo do jumento, enfrentando frio e medo, calor e medo, fome e medo... mas por um bom tempo ela foi feliz. E acho que ainda é. Porque quando a lagarta Cicinha deitou e dormiu pra sempre juntinho com as sementes da sua amiga Margarida, Cicinha voou. Sem asas, mas com a esperança de ver, lá do céu, o mundo inteiro voltando a se encher de vida.
Talvez esteja feliz, agora...
A FADA DEITA-SE E ATRÁS DELA REAPARECE O JARDIM. O JARDINEIRO, DONA NEURA, IRRITINHA CUIDANDO DE TODOS OS DETALHES.
A MÚSICA SOBE. A LUZ VAI CAINDO E ABRINDO EM FOCO BEM NO ALTO, ONDE APARECE O ROSTO DE CICINHA BANHADO EM LÁGRIMA E SORRISO.
FIM
31 DE MAIO DE 2010.
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